Três Mulheres
O livro de que falaremos hoje chama-se “Três Mulheres” de Robert Musil. Esse autor foi um dos mais diferentes que eu já li, juntamente com James Joyce e Thomas Mann. Sem dúvida alguma, Robert Musil está entre os grandes escritores do século XX. Seu romance de estreia, “O Jovem Torless” (ainda não lido por mim), que relata a vida em um internato militar alemão, foi aclamado pela crítica em 1906 quando ele ainda tinha 26 anos. Anos mais tarde, nas décadas de 1930 e 1940, Torless, foi eleito como uma alegoria premonitória das deformações espirituais da era nazista.
No mesmo ano em que escreveu Torless, enveredou para a carreira científica, patenteando um cromatômetro de teste de cores. Sua vida dá uma guinada em 1911, quando se casou com Martha Marcovaldi. Sua vida também mudou novamente no início da Primeira Guerra Mundial, durante a qual serviu no exército austríaco de 1914 a 1918.
Após a guerra, conseguiu equilibrar a sua carreira científica com a carreira literária. Em 1923, recebeu o prêmio Kleist e, em 1924, a cidade de Viena lhe concedeu um prêmio literário pelo livro “Três Mulheres”, do qual falaremos hoje.
Apesar de suas realizações literárias, Musil enfrentou dificuldades financeiras quando se mudou para Berlim, após a ascensão do Partido Nacional Socialista em 1933. Muitos artistas fugiram da Alemanha. Ele voltou para Viena, mas foi forçado a sair novamente quando a Áustria foi anexada em 1938. Fugiu para a Suíça, onde se defrontou com problemas de saúde. Suas obras foram proibidas na Alemanha e na Áustria, levando-o à condição de quase pobreza em Genebra, onde se estabeleceu.
Muitos amigos, como Thomas Mann, Herman Broch e Albert Einstein, tentaram ajudá-lo a se mudar para os Estados Unidos, mas já era tarde demais. Robert Musil acabou falecendo em 15 de abril de 1942, deixando sua grande obra inacabada, “O Homem sem Qualidades”, escrita entre 1910 e 1942. A primeira parte foi publicada em 1930, e a segunda em 1933. A obra foi escrita em três volumes, mas não foi concluída. O romance é um romance de ideias que se passa nos últimos dias do Império austro-húngaro, e as ideias que circulavam sobre a vida, a organização social. Eu li esse livro, mas ainda não fiz a resenha. Farei isso em breve.
Bem, feita essa brevíssima introdução, a velha pergunta de sempre: Vamos à história? Vou adiantando que não é um livro fácil de ler. Exige um pouco mais do leitor. Robert Musil constrói uma narrativa de três mulheres diferentes e as usa para tecer uma rede intricada de ideias e associações, proporcionando uma espécie de vertigem intelectual.
As Três Mulheres são histórias que abordam mulheres diferentes: “Grígia”, “A Portuguesa” e “Tonka”, que é a última história dividida em capítulos para facilitar a leitura.
O conto começa com a seguinte frase:
“Existem na vida espaços de tempo que parecem alongar-se por forma estranha, como se hesitassem em prosseguir ou quisessem mudar de rumo. Pode ser que, numa dessas alturas se deparem facilmente com o infortúnio.“ (pág. 7)
Grígia, o primeiro conto, é o nome de uma camponesa de Veneza. Homo, o personagem principal, era casado e tinha um filho pequeno, mas doente. Sua doença não tinha sinais de melhoras. O médico recomendou que o menino ficasse em uma casa de repouso por um longo período. Homo não conseguia decidir-se se ia ou não. Nessa relutância, havia um egoísmo, reconhecido por ele inclusive. Ele nunca havia se separado da mulher. Ele amava profundamente sua esposa. No entanto, a doença do filho mexia com ele no quesito da falta de vontade de ir com a mulher e o filho para uma casa de repouso. Não gostava de praias e muito menos de estâncias nas montanhas.
Homo ficou sozinho em casa e, dois dias depois, recebeu uma carta de um tal Mozart Amadeo Hoffingot, que havia conhecido anos atrás numa viagem e que havia travado uma relação cordial com ele desde então. Era um convite para ir às antigas minas de ouro venezianas do vale de Fersena. Homo não vacilou, mandou um telegrama à mulher dizendo que iria se ausentar. E, como geólogo que era, não podia perder a oportunidade de ganhar um dinheiro e trabalhar na abertura das minas de ouro.
Homo não ficou em um hotel, mas na casa de um conhecido de Mozart Amadeu Hoffingot. Musil relata uma natureza montanhosa, o ouro começa a fluir:
“Começou uma vida extremamente agradável. Passavam os dias nos montes, em galerias antigas cheias de entulho, ou em novas sondagens, ou nos caminhos da encosta onde se faria uma estrada larga; o ar era fortíssimo, já adoçado pelo derreter da neve. Distribuíam dinheiro às pessoas e reinavam como deuses. Davam trabalho a toda a gente, homens e mulheres. Com os homens formaram equipes de trabalho que distribuíram pelos montes, onde permaneciam durante a semana; com as mulheres, organizaram colunas portadores para lhes levarem ferramentas e provisões a locais inacessíveis A casa de pedra onde era a escola fora transformada num armazém onde se guardavam os víveres e onde eram carregados; uma voz aguda de homem sobressaía da algaraviada das mulheres que esperavam uma atrás da outra, e o cesto amarrado às costas era enchido até que os joelhos se dobravam e as veias do pescoço intumesciam” (pág. 15)
“... As mulheres deixavam transparecer livremente esses sentimentos, mas, por vezes, ao passar-se junto de um prado, também podia lá estar algum velho camponês, acenando com a foice, como a própria imagem da morte (pág. 16)
Homo recebe uma carta do filho, sente saudade da vida familiar. Mas o ouro começa a aparecer, os metais preciosos começam a mudar a paisagem da cidade onde estava:
“Sob o musgo, talvez se encontrasse cristais brancos e lilases. Por vezes, no meio da floresta, a torrente deslizava sobre uma pedra, assemelhando-se a um pente de prata. Deixou de responder às cartas da mulher. Era um segredo daquela paisagem, a forma como se lhe ficava a pertencer”. (pág. 24; pág. 25)
A história avança, vemos as mulheres sendo subjugadas à figura do homem, embora todas fizessem o mesmo trabalho de um homem. Todos os homens são descritos como grosseiros.
“Anedotas pícaras fundiam-se em risadas. Começavam quase sempre com o mesmo dito: “ Certo dia ia um judeu de comboio...” só uma vez é que um perguntou: “Quantas caudas de ratazanas são precisas para ir da terra a lua?” Aí todos ficaram calados e o major pôs o disco da Tosca, dizendo melancolicamente, enquanto o gramofone começava a girar: - Em tempos, gostaria de ter se casado com a Geraldine Farrar...”
E a voz dela saiu pelo funil, penetrou na sala elevou-se aos ares, voz de mulher admirada por homens embriagados...” (pág. 36)
A mulher é descrita como um animal feroz e poderoso, mas como uma presa indefesa ou o animal fraco e submisso. É nesse momento que aparece Grígia. Homo a chama de Grígia graças ao nome que ela dá à sua vaca:
“Como a vaca tinha uma acentuada tendência para se afastar em direção ao vale, o incidente repetia-se regularmente em todo o pormenor, a ritmo pendular. E, porque tudo isso era tão naturalista e tinha um pouco sentido, é que ele troçava dela, chamando-lhe também de Grígia.” (pág. 40)
O relacionamento progride, as atitudes de Grígia também mudam. Começam a sair do papel de mulher que ela deveria aceitar:
“Passado algum tempo, tornara-se no amante da camponesa: a transformação que sofrera, preocupava-o, porque sem qualquer dúvida, algo de profundo se passava com ele. Quando fora a casa dela, pela segunda vez, ela sentara-se perto dele num banco e, quando ele para experimentar, para saber até onde poderia ir, lhe pôs a mão na perna, dizendo-lhe que era a mais bonita daquele sítio, ela deixou a mão na coxa, pôs a dela em cima assim se comprometeram.
Um beijo selara o compromisso; os lábios dela estalaram, como acontece quando se está com sede e, depois de beber, se não consegue largar a borda do copo.” (pág. 42)
No entanto, com o passar do tempo, ela termina o relacionamento. Homo não sentia que esse amor tivesse sofrido nenhum abalo, nada havia acontecido para um fim tão abrupto. Mas o falatório estava incomodando Grígia.
A sociedade patriarcal oprimia e assustava a amante às vezes:
“ A manhã estava linda, tudo envolvendo: quão longe ficavam o mundo dos homens e o mundo das nuvens. Grígia recusou todas as cabanas e em campo aberto – ela que sempre revelara uma deliciosa despreocupação nos seus encontros de amor – mostrou receio de serem vistos.” (pág. 53)
Grígia diz que acabou sem dizer o verdadeiro motivo:
“Grígia mostrando que tinha reparado no olhar dele, comentou serenamente: - Deixemos para lá em cima do azul do céu. Que ele continue a brilhar (pág. 54)
Homo se esqueceu de perguntar o que ela queria dizer com isso. Eles entram numa galeria de uma das minas abandonadas. E quem ela vê? O marido dela. E ele tranca os dois. Mas Grígia consegue fugir por uma fenda fina, e Homo ficou preso. A infidelidade de Grígia resulta na morte de Homo. Mozart Amadeo Hoffingott resolveu suspender os trabalhos de resgate de Homo. Ele morre.
O que me chamou a atenção nesse conto? Um marido vingativo prendeu Homo e Grígia em uma caverna, mas apenas Grígia conseguiu sair. Para mim, a história sugere o perigo das ilusões, a necessidade do controle.
Grígia é casada com um marido ausente. Envolve-se com Homo, que é um homem da cidade. A partir do momento em que ela se envolve com ele, o mundo dela começa a se dissolver. Sua antiga vida se perde em um estado de desejos. Ela entra numa realidade fora da sua vida cotidiana.
A segunda história, chamada “A Portuguesa”, se passa em um mundo medieval envolto numa atemporalidade. Se em Grígia havia um conflito psicológico, em “A Portuguesa” vemos um outro conflito: a razão e o misticismo.
O senhor Von Ketten era dono de um castelo. Nenhum ruído exterior se ouvia do mundo exterior. Era um homem que não demonstrava ira ou alegria. Nessa região onde morava, ninguém passava dos sessenta. Os Von Ketten buscavam esposas em países distantes com famílias ricas. Todos era brilhantes cavaleiros. Sempre escolhiam mulheres bonitas, porque queriam filhos bonitos. E acabou se casando com a Portuguesa.
Por outro lado, havia os Bispos de Trento. Eram senhores poderosos que sempre tinham ao lado deles a justiça do reino. Os Kettens e o Bispo andavam se estranhando. No entanto, os Kettens sempre cediam. E o motivo estava relacionando com as terras. Parte da nobreza se rebelara contra o Bispo. E Ketten, que estava ausente havia algum tempo por causa de seu casamento com a Portuguesa, não tinha ideia do poderio do Bispo.
Ketten reuniu todos e partiu para a guerra. No entanto, o desastre parecia iminente. Havia chegado a notícia de que fora ferido e acabou indo procurar a Portuguesa, sua mulher. Ela olhou-o sem fazer perguntas. Ele montou seu cavalo de novo, mostrou-se carinhoso com a sua mulher.
“ Quando chegou a hora da despedida, a portuguesa, vencida pela sua feminilidade, suplicou que deixasse lavar-lhe o ferimento e colocar-lhe um novo penso, ao menos isso, mas ele esquivou-se apressou as despedidas, como sendo preciso, riu quando se despediu dela e, então ela riu também.” (pág. 72)
A luta recomeçou, o inimigo estava cada vez mais agressivo. O tempo passava. Invernos e verões anos passavam. As duas forças enfrentavam-se. Embora violentas, as forças eram fracas para vencerem um ao outro. Esperou-se onze anos. Nesse período, invadiu campos e castelos. Foi ganhando a fama por sua valentia. Teve ferimentos leves. Sua distração naquele período era domar cavalos bravios, indomáveis. Seus cabelos foram ganhando fios de cabelo branco. Em combate, esquecia de si próprio.
Mal conhecia seus dois filhos que a Portuguesa lhe dera, mas os filhos o amavam como amasse um herói. Até que a vitória aconteceu. Von Ketten venceu a guerra depois de tantos anos. Mas não contou com um imprevisto: foi mordido por uma mosca e ficou muito doente.
Ficou dias com compressas de ervas para tentar melhorar a infecção. A febre durou semanas. A fraqueza continuava. A consciência ficava cada vez mais rara. Eram pequenos relâmpagos. Sua mulher ficava ao seu lado. A fraqueza o abatia cada vez mais: ouvia vagamente a conversa de sua mulher com os outros e pareciam se dar bem.
Um italiano de passagem servia de intérprete entre o alemão e o português. Havia um clima de bebedeira e todos riam do senhor Ketten. A vitalidade do senhor Ketten voltava aos poucos, mas sem sinal de uma melhora completa. A Portuguesa havia esperado o marido por onze anos, e sua doença prolongava ainda mais seu regresso para sua esposa.
Pediu conselhos a uma bruxa, que disse o seguinte:
“ Só ficarás bom quando tiverdes consumado alguma coisa – e quando ele sondou com a mulher sobre o que aquilo seria, ela calou-se esquivou-se e acabou por dizer que não percebia” (pág. 96)
Essa afirmação revelou que algo estranho estava acontecendo com ele. Quando olhava a mulher nos olhos, ela não deixava que os olhos do marido penetrassem nos olhos dela.
“A portuguesa inclinava-se cariciosamente para o bicho, que se punha de costas no colo dela e com as garras curvas procurava os seus dedos brincalhões, como uma criança; o jovem amigo. inclinava-se, rindo, para o gato e para o colo, e o Senhor Von Ketten associava aquela dissipação ociosa à sua enfermidade quase vencida, como se ela, na sua mórbida tranquilidade, tivesse passado para o corpo do bicho, já não tivesse nele, mas entre eles. Um criado disse: - O bicho está com sarna...(pág. 99)
Ketten começa a desconfiar e alimentar a possibilidade de traição por toda parte, de todos os presentes. Ele deseja se livrar de todos, mas ele não consegue tomar a decisão. Algo mudou e matar deixou de fazer parte de sua natureza. Certa vez, ele subiu na torre do castelo e tentou resgatar sua esposa e o hóspede. Ao fazer isso, suas forças retornaram, mas o hóspede desapareceu. Sua esposa ergueu-se como se em sonhos o esperasse, ele viu-a à sua frente ,e a portuguesa disse:
“Se Deus pôde fazer-se homem, também pode-se tornar gato – disse a portuguesa, e ele teve de pôr -lhe a mão na boca, por causa da blasfêmia, mas eles bem sabiam, nenhum som se conseguiria ouvir para lá daqueles muros.” (pág. 108)
Do ciúme ao cuidado, Von Ketten sai do estado de guerra para uma espécie de amor.
“Tonka” é o terceiro conto. É uma história que envolve mistério. E qual é o mistério? Tonka engravida quando seu amante estava viajando. Tonka nega e insiste até a morte que não o traiu. De todas as histórias, essa é a maior delas, e está dividida em pequenos capítulos. Conta a história de um relacionamento entre um jovem da classe média e uma camponesa chamada Tonka. Seu nome em alemão é “Antônia”, mas a forma abreviada vem do tcheco “Toninka”. Ela é definida pelo narrador da seguinte forma:
“Tonka foi sempre igual a si própria, tão simples e transparente, que parecia um objeto de uma alucinação em que se contemplassem as coisas mais inacreditáveis.” (pág. 134)
Algumas coisas aconteceram em sua vida. Uma delas foi que a sua avó havia morrido. Mas, apesar de tudo, Tonka não era uma pessoa inteligente, sua forma de agir no mundo resumia-se ao sim e ao não. Ela tem dificuldade de se expressar.
“Como Tonka era silenciosa! Não conseguia falar nem chorar. Será que aquilo que não pode falar, nem ser expresso que desaparece em silêncio na humanidade, pequeno traço inscrito na sua história, será que tal ação, tal pessoa, tal floco de neve caindo isolado num dia de sol, realidade ou imaginação, é bom, mau ou sem valor?” (pág. 140)
Quando a sua avó morreu, deixou havia deixado para ela uma quantia em dinheiro em virtude de seu trabalho. Recebeu essa quantia sem ter ideia se era justa ou não. Ela não fazia ideia. Tirou do vestido uma carteirinha e dobrou as notas de uma forma completamente resignada.
“ – Por que é que não exiges que ele te pague mais?
- Não sou capaz...
- Então por que é que...
Durante essas conversas a face de Tonka fechava-se. Não rebatia, mas não aceitava as reflexões – Por favor – argumentava ele - , isso ´uma contradição, tens de me explicar porquê ... não adiantava. – Tonka fico zangado por seres assim... (pág. 152)
A pessoa que a questiona era o seu futuro amante. Tonka em um primeiro momento não excitava o espirito dele. Era químico. Mas a cada dia vinha a aprender a gostar mais dela do que podia imaginar.
“Não era assim tão simples, amar os simples. Por outro lado, surpreendia-o, as vezes com conhecimentos sobre assuntos de que deveria estar muito longe: até mesmo sobre química. Quando ele, entusiasmado com a profissão, lhe contava coisas, mais em jeito de monólogo, de repente, ela comentava isto ou aquilo. Da primeira vez, espantado, perguntou-lhe como sabia.
O irmão da mãe dela, que vivera também na casinha por detrás do bordel, era estudante. – Morreu logo a seguir aos exames...
- E aprendeste isso então?...
- Eu ainda era pequena – apresentava Tonka – mas, quando ele estudava, eu tinha sempre de lhe perguntar as lições. Não percebia palavra, mas ele escrevia-me as perguntas num papel. – Ponto Final! E assim, por mais de dez anos, se tinham colocado numa caixinha, as bonitas pedras de que sequer sabia o nome. (pág. 153; pág. 154; pág. 155)
A relação entre os dois não era amorosa, mas não era leviana. A verdade é que começavam a andar muito tempo juntos. Viam-se no fim das tardes, passeavam, compartilhavam os dias vividos um com o outro. Foi aí que aconteceu o primeiro beijo. Foi a partir desse beijo que começaram a discutir a ideia de morar juntos. Tonka ouviu a proposta calada. Pediu que adiasse o pedido. Não disse que sim nem não. Foi aí que ele disse:
“Fecha os olhos. Está bem?...
A cama estava aberta, e Tonka dirigiu-se para ela, mas indecisa, sentou-se subitamente, de novo, na cadeira próxima.
Ele chamou: - Tonka! – Ela pôs-se novamente de pé e, de cabeça baixa começou a tirar as roupas.
Um pensamento desagradável ficou para sempre ligado àquele momento de doçura.
Tonka oferecia-se? Nunca lhe jurava amor: porque não se insurgia ela contra uma situação que no máximo, lhe não dava esperanças? Atuava em silêncio, como se subjugada pelo poderio do senhor; seria que obedeceria também a outro que se mostrasse firme? (pág. 158; pág. 159)
Se despiram e exibiram um para o outro a nudez. Havia uma diferença de corpos. O dele, um corpo juvenil com seus pensamentos sofisticados e esclarecidos, e Tonka parecia que fugia dele. Anos se passaram em que já viviam juntos. Até que um dia Tonka começou a se sentir mal, achou que estava grávida. Mas tinha um problema: a gravidez ocorreu quando ele estava ausente, em viagem.
“ Havia é certo, outras possiblidades naturais – teóricas ou platônicas, como vulgarmente se diz – mas, na prática era probabilidades; na prática a possibilidade de ele não ser o pai da criança de Tonka nem o causador da sua doença, era o mesmo que uma certeza.” (pág. 162)
O marido tentava obter uma confissão de Tonka. Nessa época, ela trabalhava em um armazém. Trabalhavam muito e não tinham tempo para o sexo. Por alguma razão, Tonka foi ficando cada vez mais pálida. Havia um desgosto nela. Sempre que tentava obter uma confissão, Tonka negava. Não sabia como aquilo tinha acontecido.
Para piorar as coisas, Tonka perdeu o seu emprego e estava muito mal:
“Nunca se sentira como agora a vasta comunidade do mundo; perseguia-o por todas as ruas por onde passava; indo no seu encalço como ruidosa matilha de cães; cada um pensando só em si, mas formando, mesmo assim, um vasto conjunto: no entanto ele não tinha ninguém a quem pedir auxílio ou, pelo menos alguém com quem pudesse contar o seu destino.” (pág. 176)
A teoria da infidelidade ganhava cada vez mais força. Essa infidelidade sem explicação colocava-o no meio de um dilema: ajudá-la ou não ajudá-la? Abandoná-la nessa terrível situação ou segurar as pontas?
Cada vez ficava mais claro que a resposta ao mistério da infidelidade ganhava novas proporções. Tonka sentia que a pouca sorte caminhava em sua direção de forma inexorável. O amante começou a usar barba, o que lhe dava uma péssima impressão. Tonka não gostava daquela barba.
Ele começou a conviver com a ideia de que a morte de Tonka seria uma boa coisa e que poderia acontecer diante da vida insuportável em que estavam vivendo.
Resolveu tentar empregar algumas armadilhas para que ela caísse em contradição, mas ela dava sempre a mesma resposta:
“... manda-me embora se não acreditas em mim.” (pág. 182)
E começou a acompanhá-la em todas as suas saídas, não queria deixá-la sozinha. Até que numa noite encontrou um homem que passou sem cumprimentá-lo. Tonka havia corado. E mais uma vez, a ideia de que esse homem poderia ser o pai da criança o assaltava. Apareciam personagens ridículos à sua frente. A infidelidade de Tonka podia ser um sonho. A paranoia. Alguma coisa inatingível precisava acontecer para que sua dúvida se transformasse em convicção.
Sua doença começa a progredir, sua pele descama. O dinheiro fica cada vez mais escasso. Até que o jovem pensou:
“Certo dia até lhe mandou dizer a explicação de um médico da qual extraia com clareza que Tonka certamente lhe fora infiel. Mas, em vez de o alarmar, quase lhe despertou uma agradável surpresa, porque achou que isso já não o perturbava, pouco lhe importa o que tivesse acontecido, e sentiu pena da pobre Tonka, tanto sofrimento por causa de uma única queda.” (pág. 201; pág. 202)
Tonka foi para o hospital. O amante cortou a barba e foi visitá-la. Depois começou a mandar cartas dizendo numa frase: “Acredito em ti!” Tonka não respondia. Até que Tonka morreu. As tensões acabaram-se:
“E naquele momento, tudo o que até aí não soubera, lhe surgiu, rompera-se a venda da cegueira; durou um longo momento e, logo a seguir, mais uma coisa lhe ocorreu. E assim continuou, algo o tornava melhor que os outros, pois na sua vida, ao lado da luz, havia também uma pequena sombra irradiante.
Nada disto veio já ajudar Tonka. Mas para ele foi uma ajuda. Muito embora a vida humana passe a correr, há que ouvir todas as vozes e encontrar sempre em si uma resposta”. (pág. 215)
O jovem percebe que há uma parte de Tonka que permaneceu intocada nele. A infidelidade tornou-se irrelevante.
“As Três Mulheres”, de Robert Musil, não é um livro fácil No entanto, merece um lugar de “HONRA” na sua estante. Vale a pena ler.