O Homem sem Qualidades
Finalmente me sento na cadeira para escrever a resenha de um dos livros mais lidos por mim: “O homem sem qualidades”, de Robert Musil. Devo ter lido esse livro umas oito vezes. O estado em que ele se encontra é de quem foi folheado inúmeras vezes, ou seja, quase em frangalhos. Essa quantidade de leituras feitas por mim desse livro deve-se a alguns fatores. Lembro-me como se fosse hoje da primeira vez. Não havia entendido bem o livro; no entanto, sabia que havia ali uma obra-prima. Li duas vezes seguidas. Em aeroportos, em hotéis onde Os Inimigos do Rei (banda à qual pertenci) se hospedava para shows. Sem contar as vezes que li em casa. Sendo a última vez na minha casa em Teresópolis.
O livro exige uma certa dose de paciência. Tem horas que você se pergunta: é isso mesmo que o autor quer dizer? O livro tem um certo nível de reflexões que você só começa a entender horas depois. Se eu começar a ler esse novamente, algo novo surgirá. E, para não interromper a sua linha de pensamento, você segue. E quando termina o livro, as suas ideias ficam e você tem a necessidade de reler. Pelo menos foi assim que aconteceu comigo.
O livro é um romance de ideias. Foi escrito em uma época de grande agitação social e política. O que me chamou a atenção depois de várias leituras é que um dos temas abordados é a crise de identidade e a fragmentação da sociedade, o que foi intensificado pelo declínio do Império Austro-Húngaro e pelos prenúncios da Primeira Guerra Mundial. O romance reflete a busca por novos valores numa época em que as antigas ordens e sistemas de crenças estavam entrando em colapso.
O livro começou a ser escrito em 1920. Musil ganhou experiência como oficial da Primeira Guerra Mundial e também como técnico, patenteando um cromatômetro de teste de cores.Seus estudos em matemática, filosofia e psicologia experimental lhe deram importantes insights teóricos. As filosofias de Schopenhauer, Frederich Nietzsche, Ernst Mach, Ludwig Klages e Ralph Wando Emerson são expressas nos diálogos e autorreflexões de Ulrich, o protagonista do romance. Muitos dos personagens guardam certas semelhanças com o filho de um industrial judeu-alemão, escritor e, mais tarde, ministro das Relações Exteriores do Reich, Walter Rathenau. Ágata, Walter Clarisse e Diotima são personagens baseados no círculo de amigos e conhecidos de Robert Musil.
“O homem sem qualidades” é um romance inacabado e, embora Musil tenha passado os últimos anos de sua vida em extrema pobreza, a obra consolidou a sua fama mundial. Esse romance é considerado um dos romances mais importantes em língua alemã do início do século XX. “O homem sem qualidades” é visto pelos críticos como a contraparte alemã de “Ulisses”, de James Joyce, ou de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust.
Na Primeira Guerra Mundial, Musil serviu como capitão. Em 1917, foi declarado nobre, tornando-se agora Robert Edler von Musil. Escreveu contos e ensaios. De 1931 a 1933, ele viveu em Berlim e depois retornou a Viena. No verão de 1938, ele se mudou para a Suíça com a sua esposa judia. Robert Musil se mudou para Genebra devido à ocupação nazista em Viena. Empobrecido, viveu dependente de esmolas. Continuou trabalhando no seu romance. Mas acabou morrendo em 15 de abril de 1942.
O contexto histórico se caracteriza pela crença no progresso e pelo entusiasmo em relação às inovações técnicas e científicas. No entanto, uma desilusão começou a emergir na virada do século XX. O desencanto com o Iluminismo e o descrédito da religião e da tradição levaram ao declínio de valores, sem que o mundo moderno, lógico e racional pudesse oferecer um novo ponto de apoio firme. Com a industrialização da produção em massa, as pessoas foram cada vez mais reduzidas a uma engrenagem na grande máquina, a meros funcionários.
Todos começaram a ansiar por fontes de sentido na vida. Os sentimentos reprimidos começavam a encontrar novos caminhos em outros lugares. Em algumas partes da Europa, isso levou a uma sensibilidade sentimental e romantizada em grandes círculos da nobreza e da classe média alta. No entanto, alguns elementos irracionais começaram a aparecer – o racismo, o antissemitismo e o nacionalismo excessivo também entraram em jogo. O resultado foi a catástrofe da Primeira Guerra Mundial, que custou milhões de vidas com o advento das armas produzidas industrialmente e em massa.
A primeira dificuldade que tive quando li esse livro é que ele é um acúmulo de sequências que giram em torno do personagem central Ulrich. O romance é uma pilha de sentimentos, ideias e possibilidades de vida. Um inventário de ideias contemporâneas. Seu objetivo é capturar as ideias da época dando uma forma, utilizando uma linguagem cirúrgica. Todo esse projeto levou o autor ao esgotamento financeiro.
Vamos à história?
A ação de “O homem sem qualidades” se passa na Áustria imperial dissimulada sob o nome de Kakânia. O romance faz um retrato bem construído da burguesia no início do século XX e nos mostra o retrato ficcional de um mundo em decadência.
Não se trata de um romance histórico, mas é um romance que busca discutir o problema da realidade do ponto de vista da consciência moderna. Kakânia serve como paradigma do mundo moderno, e foca na constituição humana do indivíduo.
Ulrich é o personagem que conduz a história. Ele é o “Homem sem Qualidade”. Ele é questionador das identidades e verdades fixas. Explora temas como moralidade, amor e a busca autêntica em um mundo cada vez mais racionalizado.
Ulrich vive em um estado de confusão que se reflete em sua casa, um pequeno castelo. Diante da perspectiva de redecorá-lo, ele se sente paralisado pelas infinitas possibilidades que se abrem diante dele. Livre para escolher “dos assírios ao cubismo”. Ele reflete:
“... a ameaça “Dize-me como moras e diz-te -ei quem és”, que lera tantas vezes em revistas de arte, pairava sobre sua cabeça. Depois de muito ocupar dessas revistas decidiu que era melhor trabalhar pessoalmente na construção da sua personalidade, e começou a desenhar seus futuros móveis. Mas assim que imaginava uma forma impressionante e suntuosa, ocorria-lhe que em seu lugar podia colocar uma forma utilitária, técnica e menor; e quando desenhava uma despojada forma de concreto, lembrava-se das magras formas primaveris de uma menina de treze anos, e começava a sonhar em vez de tomar decisões (...) Nesse momento, (o homem sem qualidades) entregou a decoração de sua casa ao capricho dos fornecedores(...) Quando estava tudo pronto, pode balançar a cabeça e indagar-se: Então pé isso que vai ser a minha vida?.” (pág. 17)
Ulrich estava vivendo um momento com ideias incoerentes sem um centro, tão característico do presente. Por fim, ele imaginou salas impraticáveis, salas giratórias, salas caleidoscópicas, cenários plenamente ajustados à alma. E foi assim que suas ideias foram se tornando cada vez desprovidas de conteúdo.
Ulrich tem 32 anos de idade e tem uma mente analítica aguçada. Ele reconhece muito claramente as inadequações na existência de seus contemporâneos, mas ainda não encontrou um estilo de vida que gostaria de comprometer.
“Mas se existe senso de realidade (...) tem de haver um senso de possibilidade. (...) Assim, o sendo de possibilidade pode ser definido como a capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é.” (pág. 14)
Ele tinha pretensões de se tornar um homem importante um dia. E tentou isso de três maneiras. Se empolgou em ser Napoleão na escola e tentou a sorte no exército. Entrou em um regimento de cavalaria, teve casos, chegou a fazer alguns duelos, o que acabou o ajudou a ser promovido a tenente. No entanto, certa vez entrou em conflito com um financista.
“O financista teve uma conversa com o Ministro da Guerra, a quem conhecia pessoalmente, e o resultado foi que Ulrich teve um longo encontro com um superior, no qual lhe explicaram a diferença entre um arquiduque e um simples oficial. A partir daí a profissão de oficial não lhe agradou mais. Esperava encontrar-se num palco de aventuras que abalassem o mundo, cujo herói seria ele próprio, e de repente via um jovem embriagado fazendo desordem numa grande praça vazia onde só as pedras lhe respondiam. Percebendo isso, despediu-se daquela carreira ingrata, na qual acabara de chegar a tenente, e deixou o serviço militar.” (pág. 28)
A segunda tentativa de se tornar um homem extraordinário foi quando trocou o exército pela engenharia. Sem dúvida, era uma moldura bem adequada de um futuro brilhante e de um autorretrato. Grandes projetos para empresas, com traços decididos, cachimbo entre os dentes, concretizando grandes projetos, mostrando muita eficiência. Mas havia, segundo Ulrich, uma incoerência em tudo aquilo:
“Mostravam-se estreitamente ligados às pranchetas de desenho, amantes de sua profissão, com uma admirável eficiência; mas se lhes sugerissem aplicar a si próprios e não as suas máquinas àquelas ideias audaciosas, achariam tão antinatural quanto usar um martelo para matar.” (pág. 29)
Em outras palavras, os técnicos bem-sucedidos em suas áreas de atuação não conseguem desenvolver um plano de vida a partir dela. Então ele viu sua terceira e última chance: a matemática. A matemática, nas palavras de Ulrich, havia entrado na vida das pessoas como um demônio. Seus trabalhos nesse campo haviam alcançado um certo sucesso. Até que certa vez começou a reparar nas notícias de jornais sobre jogadores de tênis geniais, gênios do futebol:
“Mas foi exatamente aí que Ulrich leu em alguma parte, como antecipação de um “cavalo de corrida genial”. Era uma notícia sobre um grande sucesso nas pistas de corrida, e o autor talvez nem tivesse consciência da dimensão da sua ideia, que o espírito dos tempos lhe inspirara. Mas Ulrich compreendeu que ligação inevitável existia entre sua vida e aquele cavalo.” (pág. 34)
Quando um cavalo foi descrito como gênio em um jornal, foi aí que Ulrich perdeu a esperança de querer ser genial. Acabou alugando um pequeno castelo nos arredores de Viena e decidiu tirar um ano de férias da vida.
Nessas férias da vida, acabou se encontrando com seu amigo de infância Walter e sua esposa, Clarisse – um casal incomum. Walter era considerado um gênio musical, pronto para decolar rumo ao sucesso. Entretanto, enquanto isso, Walter consegue um emprego como funcionário público de nível inferior em um escritório cultural e seu talento está mais ou menos se esgotando. Walter estava se tornando um burocrata e seu talento começou a se esgotar. Começou a ficar introspectivo, trancado em seu quarto tocando Wagner. Um tipo de música que em anos anteriores ele havia ensinado a Clarisse a desprezar, considerando-a filisteia:
“ Walter parecia não poder mais trabalhar; escondia e destruía o que fizera; trancava-se horas a fio todas as manhãs ou tardes, quando chegava em casa, dava passeios de várias horas com o caderno de desenho fechado, mas ocultava ou rasgava o pouco que esboçava nele. Havia para isso cem motivos diferentes. Mas também suas ideias começavam a mudar drasticamente nesse tempo. Ele não falava mais de “arte contemporânea” e “arte do futuro”, ideia que Clarisse se ligavam com ele desde os quinzes anos, mas fazia um traço em algum momento – na música, no tempo de Bach; na literatura, no de Stifer, na pintura, em Ingres – e declarava que tudo viera depois era sobrecarregado e degenerado, exagerado e decadente; afirmava cada vez com maior veemência que numa época tão envenenada em suas raízes espirituais como a atual; o puro talento criador deveria se abster. Mas, embora sua boca pronunciasse aquela severa, ele se traia porque, assim que se encerrava em seu quarto, de lá começava a soar, sempre mais frequentes, as melodias de Wagner, isto é, música que outrora ele ensinara a Clarisse a desprezar como exemplo de época degenerada e excessivamente burguesa, mas à qual agora se rendia, como uma bebida espessa, quente e inebriadora. (pág. 39)
Walter é um pianista fracassado. Clarisse (sua esposa) é uma mulher neurótica e destrutivamente insensível. Clarisse o via como um gênio. Era filha de um pintor renomado por cenografias. Clarisse se rebelou ao crescer, odiando tudo que é voluptuoso na arte. Ela se recusa a dormir com Walter quando ele toca Wagner. Ele toca para provocá-la. Walter é uma daquelas pessoas que depositaram muitas expectativas quando era jovem, mas que acabaram se acomodando em uma cruel mediocridade à medida que envelheciam. Ele atribuía seu fracasso à decadência da época.
Sua mulher, Clarisse, via nisso um desperdício de sua genialidade. Para fazer frente a toda essa situação, ela começa a não querer lhe obedecer e se recusa a ter filhos com ele. Seu medo era viver uma opressiva vida burguesa normal. Pior de tudo: ele se tornou obsessivo por Wagner.
Em um outro momento do livro, acontece o julgamento de um carpinteiro chamado Moosbrugger, que é obviamente retardado mental. Ele matou uma prostituta de quem era apaixonado de forma brutal. Ele já havia matado outras pessoas e vai ser condenado à morte. Ulrich decide defender de alguma forma o homem condenado. Quando ele conta a Clarisse sobre Moosbrugger, ela fica emocionada pelo destino dele. Ela estabelece como meta obter, de alguma forma, o perdão para o assassino, e espera que isso traga a sua redenção.
Ulrich não consegue encontrar uma vocação, até que conhecemos o seu pai, que o ajuda a organizar sua nomeação como secretário honorário de uma campanha nacional cujo objetivo era celebrar o septuagésimo jubileu do Imperador Francisco José em 1918. Chamada: “Ação Paralela”. E o que vem a ser isso? É uma reunião de vários representantes da sociedade: um político, um general, um diretor judeu-alemão de um grande fundo internacional que sonha em reconciliar “alma com economia” cujo nome é Paul Arnheim, um industrial muito seguro de si, um patriota (personagem esse inspirado em Walter Rathenau), um intelectual e fundador da imensa Allgemeine – Elektrizitats – Gesellscchaft (AEG). (Uma empresa de equipamentos elétricos, Walter Rathenau foi morto pelos nazistas). Nas palavras do próprio Musil: “Arnheim é numa só pessoa o que todos os demais são separadamente”.
Rachel, Clarisse, Bonadea, General Stumm Von Borderweher, Conde Leinsdorf, Diotima, Walter e o banqueiro judeu Leo Fischel e sua filha Gerda de vinte três anos se juntam com um bando de antissemitas em sua casa:
“Gerda andava tão nervosa e anêmica, e logo ficava tão irritada quando se tentava limitar u pouco aquelas amizades – disse Clementina, - e afinal eram apenas rapazes bobos, sem educação, mas seu ostensivo antissemitismo místico não apenas era malcriado como demonstrava grosseria interior” (pág. 222)
Musil entrelaça e os confronta, os discute, tecendo uma teia gigante onde captura interesses, sonhos, estupidezes, insatisfações, compromissos, enfim todas as pistas que traduzem a mentalidade da época. E a “Ação Paralela” fundada pelo Conde Leinsdorf, um patriota que tinha uma influência nos bastidores da Kakânia (a monarquia austro-húngara). O objetivo da “Ação Paralela” é promover a unidade do estado multiétnico de Kakânia, integrando a classe média alta de acordo com o lema “educação e propriedade”.
É uma espécie de andaime sobre o qual pendura a sua história e desfia seu elenco heterogêneo de personagens. Nessas reuniões, discutia-se muito, nada era rejeitado, nada era decidido. Ulrich percebe tudo isso e tenta se desligar. Ele faz parte das reuniões, não por convicções ideológicas ou pessoais, mas na posição de livre observador.
A prima de Ulrich, Ermelinda Tuzzi, uma das principais impulsionadoras da “Ação Paralela” se viu atraída por uma onda de romantismo e apego a Deus em plena era das máquinas. Ulrich a apelidou de Diotima em homenagem a alta sacerdotiza do amor em plena era em que as máquinas eram celebradas como desafio as crenças espirituais.
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“... Diotima estava decidida a provar o marido, agora ou nunca, que seu salão não era de brinquedo. Sua Alteza lhe confiara que a grande Ação Patriótica precisava de uma ideia que a coroasse, e ambicionava ardentemente encontrá-la. A possibilidade de ter de realizar, com os meios do império inteiro diante dos olhos atentos do mundo, algo que mostraria a cultura austríaca na sua mais íntima essência, essa possibilidade dava a Diotima a impressão de que seus salões se tivessem aberto de súbito e na soleira batesse, como continuação do seu próprio assoalho, o mar infinito.” (pág. 78)
Qualquer sentimento que não seja ilimitado é inútil. Foi nesse momento que ela se encontra com Paul Arnheim, judeu rico, que falava cinco línguas. Sua principal ambição era levar “ideias às esferas do poder”. Ele tinha um grande espírito. Havia escrito muitos livros, e sua tese principal era associar “a economia à alma”. Mas não ficava por aí, escrevia sobre “séries algébricas”, sobre a teoria da relatividade, sobre a teoria atômica de Bohr, a flora do Himalaia e psicanálise. Quando ele se encontrou com Diotima, o amor era o destino.
No entanto, veremos que o verdadeiro objetivo de Paul Arnheim na Ação Paralela era outro, tinha a ver com ganhar o controle dos campos de petróleo na Galícia.
Robert Musil se diverte interpretando seus personagens uns contra os outros. Diotima é uma das vítimas de Robert Musil, ela condena a ciência pela tentativa de desencantar o mundo com fatos.
Os tumultos que Ulrich testemunha no Palácio do Conde Leinsdorf terminam quando ele recebe a notícia do falecimento de seu pai. No funeral, ele encontra com a sua irmã Ágata. Os dois se conheceram muito pouco durante a infância porque Ulrich havia sido criado fora de casa na maior parte do tempo após a morte prematura de sua mãe. Ulrich também não pôde comparecer ao primeiro casamento de sua irmã porque estava no hospital com um ferimento à bala resultante de um duelo.
Ágata era casada com um homem que ela amava muito, mas que morreu de tifo durante a sua lua de mel. Anos depois, seu pai insistiu para que ela se casasse com um professor do ensino fundamental, Gotlieb Hagauer. Ele era muito respeitado, tendo escrito livros aclamados. Ágata o considerava banal. O divórcio era favas contadas.
No primeiro encontro deles na casa dos pais, sentem uma conexão espiritual e passam horas conversando juntos sobre vários assuntos. No enterro do pai, muitas autoridades compareceram ao funeral. Hagauer (marido de Ágata) estava presente. Ágata decide que viverá com o irmão até o divórcio. Desgostosa com Hagauer, falsifica o testamento do pai para que Ulrich assuma a herança. Ulrich não consegue dissuadi-la de seu plano de ir embora.
A partir daí, o romance dá uma amortecida. Longas conversas entre Ulrich e Ágata, e as reflexões detalhadas sobre textos religiosos são estáticas. O romance desvia para a relação entre Ulrich e sua irmã Ágata. Nesse diálogo, parece que ambos tiram férias da realidade. Sendo que ambos eram niilistas e ativistas, não realistas.
Ulrich descobre que a “Ação Paralela” está cada vez mais fracassando, as ideias iam ficando cada vez menos claras e de difícil execução. Ulrich e Ágata chegam a Viena, os irmãos vivem um relacionamento próximo em lugar pequeno, um pequeno castelo alugado.
“- Você conhece o mito que Platão relata, segundo modelos mais antigos, de que o ser humano original inteiro, foi dividido pelos deuses em duas partes, homem e mulher? – Ela soerguera apoiada ao cotovelo e ficou inesperadamente vermelha, pois começou a achar-se ignorante por ter perguntado se Ulrich conhecia aquela história tão divulgada. E decidindo-se rapidamente, acrescentou: - Agora essas infelizes metades fazem toda a sorte de bobagens para se reunirem de novo. Isso está em todos os livros-textos das escolas superiores; não dizem infelizmente, não dizem por que isso não dá certo!
- Eu poso lhe dizer – comentou Ulrich, feliz por ver o quanto ela entendera tudo direito – Ninguém sabe qual de tantas metades que correm por aí é a sua. A gente agarra uma parece que ser a certa, e faz os mais vãos esforços de tornar-se um com ela, até vez definitivamente que não consegue. Se disso nasce um filho, as duas metades pensam, durante alguns anos da juventude, que pelo menos dessa criança se reuniram, mas pé apenas uma terceira metade, que em breve revela o desejo de se separar o mais possível das duas outras, e procurar uma quarta. Assim a humanidade, se “divide” fisiologicamente, e a unidade essencial fica como a lua diante da janela do quarto de dormir.
- Mas é de pensar que irmãos já fizeram a metade do caminho de volta para essa união! - Objetou Ágata com voz rouca.
- Gêmeos talvez.
- Nós não somos gêmeos?
- Claro! – exclamou Ulrich de repente. – Gêmeos são raros; gêmeos de sexo diferentes são uma grande raridade; mas se ainda por cima tem idades diferentes, e a maior parte do tempo mal se viram, isso é realmente uma raridade dignas de nós! – explicou, e tentou voltar a uma alegria mais branda.
- Mas nós nos encontramos como gêmeos! – insistiu Ágata sem se deixar influenciar.
- Por que estávamos de roupas iguais?
- Talvez. Por tudo! Você pode dizer que foi acaso, mas o que é acaso? Acho que exatamente ele é destino, ou uma destinação, ou como quer que se chame. Nunca pensou que foi casual você ter nascido como você? E é duplamente casual que sejamos irmãos! – Ágata explicou tudo dessa maneira, e Ulrich submeteu-se a sua sabedoria.
- Portanto, declaramos que somos gêmeos! – concordou ele. – Criaturas simétricas de um capricho da natureza, a partir de agora teremos a mesma idade, mesma altura, mesmo cabelo roupas com as mesmas listras, e andaremos pelas ruas dos homens com a mesma fita debaixo do queixo; mas chamo a sua atenção para o fato de que eles olharão em parte com zombaria em parte com emoção, como sempre acontece quando alguma coisa lhes lembra o mistério da sua existência.” (pág. 642; 643)
Ulrich e Ágata se declaram “gêmeos siameses” em eventos sociais. E ao mesmo tempp aos poucos vai crescendo uma tensão erótica entre os dois. Ulrich reconstrói o mito de Platão para explicar essa atração. Esse mito, que está no diálogo “Banquete” é uma explicação alegórica da origem do amor e da busca da “cara-metade”. Através da união dos dois sexos reconstruir as duas metades do próprio ser.
Ulrich atrai Ágata para uma união mística numa costa italiana, na deslumbrante luz do Mediterrâneo. Páginas intermináveis, e o romance termina. Musil considerava a continuação do livro, mas a guerra chegou, e o romance termina em aberto com um incesto sublimado na fusão dos irmãos. E mostrando um horizonte que “transcenda a desilusão assumida com o vazio do mundo”.
“O homem sem qualidades” tem um brilho literário. Com uma linguagem precisa e uma ironia fina, Musil apresenta os personagens em seu próprio mundo de pensamento. E os diálogos são a prova disso. Uma linguagem rebuscada, sem dúvida alguma, mas faz parte da elite da época. Comparações, analogias surpreendentemente precisas. Apesar de difícil, é uma obra prazerosa de ler, mesmo que o enredo muitas vezes não deslanche.
Mas as ironias em determinadas situações chegam a ser hilárias, além de magistralmente bem construídas. Musil apresenta ao seu leitor as mentes de seus personagens de uma forma crível, seja uma mulher histérica, ou um assassino débil mental. Nos apresenta estudos psicológicos e algumas inserções psicológicas importantes, abrindo possibilidades interessantes para o pensamento. Nos oferece uma boa visão do espírito dos tempos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
“O homem sem qualidades”, de Robert Musil, merece um lugar de HONRA na sua estante.