A Peste
Coincidentemente, tivemos há pouco tempo uma peste, algo que ceifou muitas vidas, milhões de vidas. E ainda continua ceifando – muito menos, diga-se de passagem, mas ainda mata. “A Peste”, de Albert Camus, foi um grande sucesso editorial, o livro foi traduzido para dez idiomas. Foi escrito em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, durante a ocupação nazista na França, e publicado em 1947. Albert Camus descreve com detalhes a vida cotidiana dos habitantes de Oran em 1940 durante “uma Peste”.
Essa peste não é uma história real, embora a gripe espanhola, que chegou em 1918 e foi até 1920 no mundo inteiro, tenha matado muita gente. Foi uma gripe democrática, não matou apenas os pobres, mas os ricos também. Matou até um presidente do Brasil, Rodrigues Alves, que, segundo a biografia de Afonso Arinos (cuja esposa era a neta de Rodrigues Alves), morreu devido à gripe espanhola agravada por seu estado de saúde debilitado. A gripe espanhola ceifou de 50 milhões a cem milhões de pessoas no mundo todo. No Brasil morreram 35 mil pessoas. O coronavírus matou 1,45 milhão de pessoas no Brasil. No mundo foram mais de 15 milhões segundo a Organização Mundial da Saúde.
Faço essa introdução para dizer que “A Peste”, de Camus, pode ter alguma relação com a gripe espanhola. No entanto, há interpretações que sugerem que “A Peste”, de Camus, é uma alegoria ao nazismo, a “peste marrom” que escravizou a Europa no período da guerra.
“Como todas as doenças desse mundo é também verdade em relação à peste. Pode servir para engrandecer alguns. No entanto, quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste.” (pág. 113)
Os personagens do livro, que lutam contra a disseminação da peste, tornaram-se uma alegoria da resistência ao nazismo. Albert Camus confirmou esta analogia. Albert Camus lutou na Resistência Francesa, foi jornalista e editor do jornal Combat, de resistência ao fascismo. Fazendo uma analogia, poderemos dizer que, quando a Peste chega a Oran, todos demoram a reagir e se sentem impotentes à medida que a peste ocupa a cidade. Diante da força da peste, o doutor Rieux e seu pequeno grupo de voluntários representam a luta da Resistência Francesa contra o nazismo.
“Mas o que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E já que um homem morto só tem significado se o virmos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumam-se na imaginação.” (pág. 39)
Mas a Peste de Camus lembra a pandemia recente que vivemos? A resposta é sim, e muito.
“A princípio, as pessoas tinham aceitado estarem isoladas do exterior como teriam aceitado qualquer outro inconveniente temporário que apenas perturbasse alguns de seus hábitos. Mas, subitamente conscientes de uma espécie de sequestro, sob a tampa do céu em que o verão começava a crepitar, sentiam confusamente que esta reclusão lhes ameaçava toda a vida e, chegada a noite, a energia que recuperavam com o frescor lançava-os por vezes a atos de desespero.” (pág. 91)
“A Peste” é dividida em cinco partes. Na primeira parte, a cidade de Oran nos é mostrada juntamente com os seus cidadãos e suas vidas individuais até a chegada da peste.
“A própria cidade, vamos admiti-lo, é feia. com seu aspecto tranquilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas. Em resumo: um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas de flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno” (pág. 9).
Oran, uma cidade argelina no norte da África, funciona como âncora de realidade para o leitor. Examinando a cidade mais de perto, o narrador diz que o amor é particularmente robótico.
“Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que nós convencionamos chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Também isso não é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber. (pág. 10)
“..., Mas os dias passam-se sem dificuldades, desde que se tenham criado hábitos. A partir do momento em que a nossa cidade favorece justamente os hábitos A partir do momento em que a nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. (pág. 11)
No entanto, a banalidade da cidade de Oran é contrastada com o começo da peste. É o palco para a crônica. Veremos o contraste entre o natural e o absurdo, o individual e o universal, o trágico e o cotidiano são os ingredientes dessa obra absurda. O narrador é em primeira pessoa, não tem nome, mas acompanha o Dr. Bernard Rieux, um cirurgião muito respeitado que, ao longo da história, luta para manter o senso de decência em uma situação que vai se deteriorando rapidamente. Sua esposa, internada há mais de um ano em um sanatório, faz com que ele a visite sempre, mesmo durante a peste. Mas ele não foge à luta.
Tudo começa com o aparecimento de ratos moribundos circulando pela cidade. Eles estão saindo de todos os lados para morrer. É a tragédia de uma peste (tragédia) anunciada. Corpos de ratos começam a se acumular. As autoridades decidem organizar a cremação diária dos ratos.
Nesse momento, aparece o jornalista de um diário parisiense chamado Raymond Rambert, que queria saber sobre as condições de vida na cidade de Oran. Rieux sabia que ele não poderia publicar integralmente a matéria. Mas Rieux sugere que ele investigue essa curiosa invasão e morte de ratos vindos dos esgotos de todo lugar da cidade.
“Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas as nossas casas se purgava de seus humores, deixando subir a superfície furúnculos que, até então, a minavam interiormente. Imaginem só o espanto da nossa pequena cidade, até então tranquila, transtornada em alguns dias, como um homem saudável cujo sangue espesso se pusesse de repente em revolução!” (pág. 20)
M. Michel é porteiro do prédio de escritórios do Dr. Rieux. Ele contrai uma febre estranha e acaba morrendo, é o primeiro a sucumbir à doença. Mais casos aparecem, e o Dr. Rieux e seu colega Dr. Castel acreditam que a doença seja peste bubônica. Pessoas começam a adoecer e morrer. Os habitantes da cidade estão enojados e alarmados. Uma histeria começa a aparecer, os jornais começam a clamar por ação. Os doutores instam o governo a tomar medidas preventivas, mas as autoridades tentam negar a existência dessa doença, até que o número de mortos começa a subir tanto que é impossível negar a peste. Oran começa a entrar em quarentena.
Os habitantes da cidade reagem ao isolamento com sentimentos de exílio e saudade de seus parentes e amigos ausentes. Cada indivíduo assume seu sofrimento. Enquanto isso, o padre Paneloux, um padre jesuíta em suas homilias, declara que a peste é um castigo divino pelos pecados de Oran.
Raymond Rambert, o jornalista, tenta escapar de Oran devido às circunstâncias, mas é impedido pelas autoridades civis. Ele oferece dinheiro para o submundo para tirá-lo da cidade. Mas não consegue. Ele se sente injustamente exilado na cidade. Ele não conhece ninguém na cidade e não vê razão para ser incluído na quarentena. Rieux sente pena dele. Mas a peste não tem respeito por ninguém, ela é desrespeitosa.
A frustração não reside na questão apenas de viver ou morrer. Valores começam a ser aniquilados. A parte 2 começa diferente. O narrador foca sua narrativa para uma visão geral. Olhares perdidos, pés vagando sem rumo. O narrador diz:
“Assim a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então sentiu então, já que o que sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos. Sim, era realmente o sentimento de exílio esse vazio que trazíamos constantemente em nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória. Se algumas vezes dávamos asas à imaginação e nos comprazíamos em esperar pelo toque de campainha que anuncia o regresso, ou pelos passos familiares na escada; se, nesses momentos consentíamos em esquecer que os trens estavam imobilizados; se nos organizávamos para ficar em casa à hora em que normalmente um viajante podia ser trazido pelo expresso da tarde até o expresso da tarde até o nosso bairro, esses jogos, obviamente, podiam durar.
Chegava sempre um momento em que nos dávamos bem conta claramente de que os trens não chegavam. Sabíamos, então, que a nossa separação estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação inflige aos que nela confiam. (pág. 66; pág. 67)
Na segunda parte, veremos como a doença chega e quais e os seus efeitos e estágios.
“A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deu-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio.” (pág. 63)
O narrador foca a sua narrativa em uma visão geral. Ao longo da parte 2, ele vai lembrar os eventos que se conectam uns aos outros. O presente é assustador porque é visto como uma sequência de dias e de noites de vida e de morte. A peste, ao mesmo tempo que une, separa e reúne cada um dentro de si. Cada um está confinado dentro de si, e dentro de Oran. Ninguém tem consideração especial por ninguém sob o regime da peste.
“Ninguém aceitara ainda verdadeira a doença. A maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava os seus hábitos ou atingia os seus interesses. Impacientavam-se, irritavam-se e esses não são os sentimentos que se possa contrapor a peste. A primeira reação, por exemplo, era culpar as autoridades. A resposta do prefeito diante das críticas de que a imprensa se fazia eco(“ não se poderia propor medidas mais flexíveis que as adotadas?”) foi bastante imprevista. Até então, nem os jornais nem a Agência Ransdoc tinham recebido qualquer estatística oficial sobre a doença.” (pág. 72)
Tarrou, um andarilho que se tornou amigo de Rieux, aparece na história. Ele tem uma crença semelhante sobre a responsabilidade social, mas Tarrou é mais filosófico do que Rieux. Ele questiona a violência e a pena de morte e o absurdo da vida. Ele organiza uma liga de saneamento antipeste, e muitos voluntários juntam-se a eles para ajudar. Aos poucos, o povo vai perdendo o egoísmo e reconhece a peste como desastre coletivo.
Na terceira parte, a peste reina sobre a cidade. O estilo individual desaparece, e o coletivo aparece.
“Assim durante semanas, os prisioneiros da peste debateram-se como puderam. E alguns como Rambert, chegaram até a imaginar como se vê, que ainda agiram como homens livres, que ainda podiam escolher. Mas, na realidade, podia dizer-se neste momento, nos meados do mês de agosto, que a peste tudo dominara. Já não havia então destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos compartilhados por todos. O maior era a separação e o exílio, com o que isso comportava de medo e revolta. Eis por que o narrador acha conveniente, no auge do calor e da doença descrever de maneira geral, e a título de exemplo, as violências dos concidadãos vivos, os enterros dos defuntos e os sofrimentos dos amantes separados.” (pág. 149)
A parte 3 é uma crônica intensa das semanas de crise em Oran. Agora, além do confronto com a peste, o sol escaldante de verão surge para tornar as coisas piores que já estavam. Não há mais revolta. O pânico da parte 2 havia desaparecido. Agora entra o desânimo que paralisa a população. Os cadáveres são empilhados silenciosamente aos montes cada vez maiores, e Rieux não se detém nos minutos monótonos da vida cotidiana.
“Os nossos concidadãos tinham-se adaptado, como se costuma dizer, porque não havia outro modo de proceder. Tinham ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não os sentiam. De resto o doutor Rieux, por exemplo, achava que essa era juntamente a desgraça e que o hábito do desespero é pior que o próprio desespero. Antes, os separados não eram realmente infelizes, pois no seu sofrimento uma luz que acabava de se extinguir.” (pág. 160)
A peste deixa a periferia entre os mais pobres e atinge as áreas mais ricas.
“Até aqui, a peste tinha feito muito mais vítimas nos subúrbios mais povoados e menos confortáveis, que no centro da cidade. Mas ela pareceu de repente aproximar-se e instalar-se também nos bairros comerciais. Os habitantes acusavam o tempo o vento de transportar os germes da infecção. “Ele baralha as cartas”, dizia o gerente do hotel. Fosse como fosse, porém, os bairros do centro sabiam que tinham chegado a sua vez de ouvirem vibrar muito perto deles, na noite, e cada vez mais frequentemente, a sirene das ambulâncias que fazia ressoar sob as janelas o apelo monótono e desapaixonado da peste” (pág. 150)
Os presos nas prisões morrem, os guardas também morrem na mesma proporção. A peste não discrimina pobres ou ricos, homens, mulheres, lindos ou feios, egoístas e altruístas. Todos morrem e são enterrados em valas comuns. Não há respeito individual. A peste é despótica, ela não respeita o indivíduo, o destino é a vala comum. Todos perderam a capacidade de vislumbrar os ausentes.
“Ao passo que nos primeiros tempos da peste eles se surpreendiam com a quantidade de pequenas coisas que contavam muito para eles, sem terem qualquer existência para os outros, e faziam assim a experiência da vida pessoal, agora, pelo contrário, só se interessavam por aquilo que interessavam os outros, já não tinham senão ideias gerais e o seu próprio amor assumira para eles a forma abstrata. Estavam a tal ponto abandonados à peste que lhes acontecia às vezes só desejarem o sono e surpreenderem-se a pensar: Que venham logo os tumores e se acabe com isto! Mas, na realidade, já estavam dormindo e todo este tempo não foi mais que um longo sono. A cidade estava povoada de sonolentos acordados que só escapavam realmente ao seu destino nos raros momentos em que de noite, a sua ferida aparentemente fechada se reabria bruscamente....” (pág161; pág.162)
Todos perderam a imaginação, todos viraram clichês mundanos, desejando que a peste acabe logo com tudo. É a forma como a peste vai apagando aos poucos a individualidade.
Na quarta parte, à medida que a peste vai cedendo, o individual começa a reaparecer:
“Durante os meses de setembro e outubro, a peste manteve a cidade sob seu domínio. Já que se tratava de marcar passo, várias centenas de milhares de homens continuaram a arrastar os pés durante semanas intermináveis. A bruma, o calor e a chuva sucederam-se no céu. Bandos silenciosos de estorninhos e de tordos, vindos do sul, passaram muito alto, mas contornaram a cidade como se o flagelo de Paneloux, a estranha peça de madeira que girava, aos silvos, por cima das casas, os mantivesse à distância. No começo de outubro grandes tempestades varreram as ruas. E durante todo esse tempo nada de importante se produziu além desse monstruoso arrastar de pés.” (pág. 167)
O narrador aos poucos vai revelando sobre a vida pessoal de cada personagem envolvido. Rieux, que nos convence da sua força física e mental de suportar todas as agruras, e não leva em conta as suas queixas pessoais. Agora ele sente que a peste o exauriu e sente que pode estar à beira de um colapso. Sob a pressão dos números que só aumentam somados à ineficácia do soro, ele se sente cada menos competente para lidar com tudo. Ele sente um nó na garganta quando vê seu colega Castel adormecido e desmaiado de cansaço.
“Quanto a Castel, no dia que veio anunciar a Rieux que o soro estava pronto e depois de terem decidido fazer a primeira experiência no garoto do Sr. Othon que acabavam de remover para o hospital e cujo caso parecia desesperador a Rieux, este comunicava ao velho amigo as últimas estatísticas, quando reparou que seu interlocutor adormecera profundamente na cadeira. E, diante desse rosto, em que habitualmente um ar de ternura e de ironia puna uma perpétua juventude e que agora, subitamente abandonado, com um filete de saliva a unir-lhe os lábios entreabertos, deixava ver estragos e a velhice, Rieux sentiu um aperto na garganta.” (pág. 169)
Era por tais fraquezas que Rieux podia julgar o seu cansaço. A assistência médica se torna cada vez mais escassa. Ele só consegue diagnosticar, não consegue curar. Ao longo da epidemia, ele resistiu à morte com a maior intensidade e rapidez que podia para salvar seus pacientes. Agora o soro está perdendo a força e seu próprio vigor físico está se esgotando.
“O seu papel era diagnosticar. Descobrir, ver descrever, registrar, depois condenar, essa era sua tarefa. Esposas agarravam-lhe as mãos e gritavam: “ Doutor; dê-lhe a vida!” Mas ele não estava ali para dar vida, estava ali para ordenar o isolamento. De que servia o ódio que lia, então, nas fisionomias? “ O senhor não tem coração?” tinham-lhe dito um dia. Sim ele tinha um coração. Servia-lhe para suportar as vinte horas por dia em que via morrer homens que haviam sido feitos para viver. Servia-lhe para recomeçar todos os dias.” (pág. 169)
Rieux luta contra a exaustão. A lentidão das equipes médicas de Tarrou é um dos fatores desse cansaço. Seu senso de autopreservação está desaparecendo.
Cottard, um paranoico que havia cometido um crime e que teme ser preso e punido, contrasta com todos, pois para ele a peste ocupa as autoridades, por isso não teme ser preso. Ele teoriza que é imune à peste porque já carrega sua própria sentença de morte e os homens nunca morrem de duas doenças. Para ele, uma infecção imuniza um homem de todas as infecções. O narrador ironicamente diz que Cottard no final convida Tarrou para ir à Ópera Municipal, onde estava em cartaz Orfeu e Eurídice. A companhia estava aprisionada devido à peste. Eles estavam impedidos de sair de Oran. Eles eram forçados após um acordo a repetir o espetáculo uma vez por semana. Todas as sextas-feiras, os lamentos de Orfeu e Eurídice eram ouvidos do inferno. Ironicamente, pareciam os lamentos de amantes separados, era de um realismo exato. Daí o sucesso durante a temporada da peste. O ator que interpreta Orfeu desaba no palco como uma vítima da peste no momento em que Eurídice é levada de volta ao mundo inferior. A plateia acaba saindo com medo:
“Foi necessário o dueto de Orfeu com Eurídice, no terceiro ato (era o momento em que Eurídice o momento em que Eurídice escapava ao seu amante), para que uma surpresa ocorresse pela sala. E, como se o cantor tivesse apenas esperado esse movimento do público ou, mais certamente ainda, como se o rumor vindo da plateia tivesse confirmado o que ele sentia, foi esse momento em que ele escolheu para avançar para a boca da cena de uma forma grotesca, com os braços e pernas afastados no seu traje antigo, para vir abater-se no bucolismo do cenário, que nunca deixara de ser anacrônico, mas que assim se tornou aos olhos dos espectadores pela primeira vez de uma maneira terrível. Isto porque ao mesmo tempo a orquestra calou-se, as pessoas da plateia levantaram-se e começaram lentamente a evacuar a sala, primeiro em silêncio, como se sai de uma igreja depois acabada a missa ou de uma câmara mortuária depois de uma visita, as mulheres segurando as saias e saindo de cabeça baixa, os homens guiando as companheiras pelo cotovelo, evitando o choque das cadeiras” (pág. 176)
O ator que interpreta Orfeu força o público a reconhecer os perigos reais que os ameaçam. Ver essa apresentação significa uma atitude negacionista. A peça trata de amantes separados pela morte. A realidade é revelada frente ao escapismo do público em direção a um entretenimento quando existe o terror coletivo da morte.
Rambert (o jornalista), que tentava fugir de Oran, resolve ficar, pois acaba sentindo vergonha de ter que abandonar todos em plena crise. Sob o domínio da peste, a religião está sendo trocada pela superstição. O padre Paneloux fica abalado com a morte de uma criança e na segunda homilia deixa a seguinte opção: acreditar em tudo sobre o cristianismo, ou seja, aceitar a morte sem cair de joelhos. Mas aprender a caminhar pelas trevas, um pouco às cegas e praticar o bem:
“o amor de Deus é um amor difícil. Ele pressupõe o abandono total de si mesmo, e o menosprezo da pessoa. Mas só ele para apagar o sofrimento e a morte das crianças, só ele, em todo caso, pode torna-la necessária, pois é impossível compreendê-la e n]ao podemos senão deseja-la. Eis a difícil lição que desejava compartilhar convosco. Eis a fé, cruel aos olhos dos homens decisiva aos olhos de Deus de que é preciso nos aproximarmos. Diante desta imagem terrível, é preciso que nos igualemos. Neste cume tudo se igualará a verdade brotará da justiça aparente.” (pág. 199)
A igreja está mais vazia. Logo depois ele adoece, recusa-se a procurar um médico e vem a falecer. Seus sintomas não correspondem aos da peste.
Na quinta e última parte, vemos a imagem de um solitário Dr. Rieux observando a cidade, envolvido em uma meditação solitária. Quando a esperança parecia estar destruindo a todos, um milagre acontece: o soro do doutor Castel mostra-se eficaz, os sinais apontam para o fim da epidemia. No entanto, a população hesita em demonstrar qualquer esperança diante da queda da mortalidade, pois se tornou cautelosa durante o longo confinamento. Os sinais apontam para o declínio da epidemia. No entanto, vários personagens que estavam na linha de frente para enfrentar a peste acabam morrendo, como M. Othon, o magistrado. Tarrou, um herói no combate à peste, morre no meio do caminho. Um herói que ajudou a muitos, mas sucumbiu perante a peste. A trajetória de Tarrou nos revela que ele compreendeu a natureza humana. Cottard, personagem que se mostrou indiferente e acusado de crime, acaba sendo entendido pelo narrador como um ser alienado perante a possibilidade de ser preso a qualquer momento.
Doutor Castel foi o primeiro a detectar a peste. Ele e o doutor Rieux lutam contra a negação e a lentidão das autoridades quando pedem medidas rigorosas para enfrentar a peste. Lutar contra a peste é uma afirmação da vontade humana de sobreviver. A paralisia do medo e o escapismo são atos de rendição. Mas, no final, o doutor Rieux adverte:
“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.” (pág. 268; pág. 269)
Camus descreve as múltiplas facetas humanas, desde o medo, a covardia, o egoísmo, a devoção e o heroísmo. Nesta história, a busca de um significado esbarra no absurdo da violência dos eventos. Os momentos críticos descritos por Camus nos mostram as contradições da natureza humana, mas também a solidariedade.
“A Peste”, de Albert Camus, merece um lugar de “HONRA” na sua estante.