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O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil

Confesso que, quando acabei de ler “O Povo Brasileiro − A formação e o sentido do Brasil”, de Darcy Ribeiro, entendi a verdadeira dimensão de um trabalho de pesquisa de alto nível sobre a nossa formação. A obra ajuda a tornar a nossa história mais inteligível. A formação étnica do Brasil veio de uma fusão das matrizes originais indígena, negra e europeia. Esse contingente neocolonial foi incorporado pela civilização industrial.

O livro começou a ser escrito primeiramente no Uruguai, após o golpe de 1964. Foi interrompido seguidas vezes, mesmo depois do retorno de Darcy Ribeiro ao Brasil. O livro foi definitivamente escrito após a segunda crise de câncer que o mataria. Darcy fugiu de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e refugiou-se em Maricá (RJ), quando terminou o livro.

O livro teve traduções diversas, mas, segundo o autor, foi mais discutido por historiadores e filósofos do que por antropólogos. Nas palavras do próprio autor, o motivo de os antropólogos não terem dado a devida importância foi:

“A um irresistível pendor barbarológico e um apego a toda conduta desviante e bizarra. Dedicam seu parco talento a quanto tema bizarro lhes caia em mãos, negando-se sempre, aparvalhados, a usar suas forças para entender a nós mesmos, fazendo antropologias da civilização.” (pg 15)

Darcy Ribeiro tem uma interpretação própria da formação do povo brasileiro a partir de três matrizes básicas: os índios que habitavam originalmente a terra, o europeu descobridor-colonizador (os portugueses) e os africanos escravizados. Nesse caldo cultural mais miscigenado do mundo, coexistem culturas tão diferentes entre si e dão origem a um povo e uma sociedade singular.

“O nome Brazil geralmente identificado com o pau-de-tinta é na realidade muito mais antigo. Velhas cartas e lendas do mar oceano traziam registros de uma ilha chamada Brasil referida provavelmente por pescadores ibéricos que andavam a cata de bacalhau (cf. Gandia 1929). Mas ele foi quase imediatamente referido à nova terra, ainda que o governo português quisesse lhe dar no mês pios, que não pegaram. Os mapas mais antigos da costa já a registraram como “brasileiros”. (pg 95, 96)

A palavra “Brasil”, segundo Darcy Ribeiro, surgiu com a necessidade de denominar os primeiros núcleos formados por brasilíndios e afro-brasileiros. Nessa época, começa a se configurar nesse solo nova história, nova cultura que se apresenta e se diverge das originárias: portuguesa, ameríndia e africana.

Darcy Ribeiro ressalta a possibilidade de a brasilidade ter começado a se fixar quando a sociedade local enriqueceu, em momento em que já constava na colônia a maciça presença dos afrodescendentes. A partir da segunda metade do século XVI, em meio ao processo de hibridação, chegam os africanos.

Quem são os brasileiros? Para respondermos a essa pergunta, temos que ir ao ponto central e, como todos aqueles que aprenderam História sabem, os índios encontrados no litoral foram principalmente de tronco Tupi. Somavam um milhão de índios divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo várias aldeias de trezentos a dois mil habitantes. Podemos dizer que (em número) a população indígena era a mesma que a de Portugal.

Os povos indígenas eram estruturados autonomamente. No entanto, quando eles perceberam a chegada de europeus, viram como algo espantoso, mítico, algo enviado pelo Deus Sol, o criador. Esses recém-chegados, saídos do mar, eram feios, fétidos e infectos. Pouco mais tarde, essa visão idílica que os índios tinham dos novos visitantes se dissipa. A destruição das bases da vida social indígena, a negação de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder de fazer.

Os portugueses eram pessoas práticas, experimentadas, sofridas, ciente de suas culpas oriundas do pecado de Adão, predispostos à virtude, com clara noção dos horrores do pecado e da perdição eterna.

Os índios não entendiam esses valores. Considerados vadios, vivendo uma vida fútil, inútil e farta, os recém-chegados impuseram seu modus-operandi. Os invasores vinham de uma civilização urbana classista, mais avançada, dotados de uma Corte de muitos serviços, de um Conselho Ultramarino, que tudo previa, planificava, ordenava, e provia.

Para os “civilizados”, a vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, subordinada ao lucro. Condenados à tristeza, os índios cativos, sobretudo suas mulheres através do sexo, forneciam também as alegrias para os invasores. Frente a essa invasão, os índios defenderam até o limite possível seu modo de ser e de viver, principalmente depois de perderem as ilusões dos primeiros contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão ao invasor representava sua desumanização como bestas de carga.

Os invasores trouxeram a coqueluche, a tuberculose e o sarampo. O encontro entre essas duas civilizações começa como uma guerra bacteriológica. De um lado, pessoas que viveram entre pestes, que sobreviveram e que desenvolveram resistência a doenças desse tipo. Do outro lado, pessoas indefesas, que morreram aos milhares pelas doenças trazidas. O encontro da civilização com os povos indígenas em um primeiro momento acontece através de pestes mortais e a dizimação.

O período das grandes navegações, acionado pelas revoluções tecnológicas da época, transfigurou as nações ibéricas, estruturando-as como império mercantil, alcançando uma energia expansiva inexplicável numa formação meramente feudal para uma formação capitalista.

A sociedade colonial atuava como filho da civilização europeia, em sua versão portuguesa. A mestiçagem no Brasil teria ocorrido de diferentes formas. Uma delas seria o cunhadismo. E o que vem a ser o cunhadismo? Havia entre os indígenas uma velha tradição de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhe dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com os membros do grupo. Aceitando a moça, o estranho passava a ter nela sua temericó, ou seja, tornavam-se amantes e parentes. No ventre das mulheres indígenas, começavam a surgir seres que não eram indígenas. Meninas eram engravidadas pelos homens brancos

Com o advento do cunhadismo na nova versão civilizatória, surgiu uma numerosa camada de gente mestiça, que efetivamente ocupou o Brasil. A colonização portuguesa se desenvolveu através dessa prática. Qualquer europeu desembarcado junto às aldeias indígenas tinha acesso à prática, o que acabou incorporando os índios ao sistema mercantil de produção.

Com a prática do cunhadismo, acabou surgindo uma nova gente mestiça, ou seja, uma mistura de índias com os portugueses e franceses. Por muito tempo, não se sabia se o Brasil seria português ou francês, tal força de sua presença e sua influência junto aos índios:

“No dizer de Capistrano de Abreu, por muito tempo não se soube se o Brasil seria português ou francês, tal a força de sua presença e o poder de sua influência junto aos índios. O principal deles foi o que se implantou na Guanabara junto aos Tamoios do Rio de Janeiro, gerando mais de mil mamelucos que viviam ao longo dos rios que desaguam na baía. Inclusive na Ilha do Governador, onde deveria se implantar a França Antártica.” (pg 66)

A expansão do domínio português terra adentro na constituição do Brasil é obra dos brasilíndios ou mamelucos. Gerados por pais brancos, a maioria deles lusitanos, e mulheres índias, dilataram o domínio português exorbitando o papel das Tordesilhas. Excedendo a tudo que se podia esperar. Os portugueses de São Paulo foram os principais gestadores dos brasilíndios ou mamelucos.

O que eram os brasilíndios? Eram filhos impuros da terra, rejeitados pelo pai europeu e pela mãe, índia. Eram conhecidos como “mamelucos”, nome que os jesuítas deram aos árabes que tomavam crianças dos pais e cuidavam delas em casa. Esses filhos das índias aprenderam o nome das árvores, o nome dos bichos, deram nome a cada rio... Eles aprenderam, dominaram parcialmente uma sabedoria que os índios tinham composto em dez mil anos. Estes mamelucos eram caçadores de índios, para vender ou para serem seus escravos.

“Os brasilíndios ou mamelucos paulistas foram vítimas de duas rejeições drásticas. A dos pais, com quem queriam identificar-se, mas que os viam como impuros filhos da terra,aproveitavam bem seu trabalho quando meninos e rapazes e, depois, os integravam a suas bandeiras, onde muitos deles fizeram carreira. A segunda rejeição era do gentio materno. Na concepção dos índios, a mulher é um simples saco em que o macho deposita a semente. Quem nasce é o filho do pai, e não da mãe, assim visto pelos índios. Não podendo identificar-se com uns nem com outros de seus ancestrais, que o rejeitavam, o mameluco caía numa terra de ninguém, a partir da qual constrói sua identidade de brasileiro.” (pg 82, pg 83)

Os brasilíndios foram chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis horrorizados com a desumanidade que essa gente castigava seu gentio materno. Nossos mamelucos ou brasilíndios foram, na verdade, heróis civilizadores, serviçais “del rei”, por impor a dominação que os oprimia. Esse gênero de gente alcançou uma eficiência como agentes da civilização. Falavam a sua própria língua, adaptavam-se às florestas tropicais. Tudo fruto de sua origem: os índios de matriz tupi.

Aliciados para incrementar a produção açucareira, os negros comporiam o contingente fundamental da mão de obra e da formação do povo brasileiro, tornando o amálgama racial e cultural com suas cores mais fortes. A formação do povo brasileiro foi fruto de um processo violento.

Os africanos foram arrancados de suas culturas e forçados a trabalhar como escravos. A rica diversidade linguística e cultural dos povos africanos e a política de evitar concentrar escravos de uma mesma etnia nas mesmas propriedades dificultaram a formação de núcleos de preservação do patrimônio cultural africano. Embora iguais na cor, falavam línguas diferentes, o que os força a aprender o português, o idioma do seu capataz. Podemos dizer que a formação do povo brasileiro foi fruto de um processo violento.

“Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana provenientes de três grupos. O primeiro da cultura Yorubá – chamados nagô –, pelos Dahomey – designados geralmente como gegê – e pelos Fanti-Ashanti – conhecidos como mircas –, além de muitos representantes de grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e o Haussa, do norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malé e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a “Costa Costa”, que corresponde ao atual território de Moçambique.” (pg 86)

Os negros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental, foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos e línguas não inteligíveis uns aos outros. A África era, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa babel de línguas. Muito embora homogêneos no plano da cultura, os africanos variavam também largamente nessa esfera. Tudo isso fazia com que a uniformidade racial não correspondesse a uma unidade linguístico-cultural, que ensejasse uma unificação, quando os negros se encontram submetidos todos à escravidão.

 A introdução do trabalhador europeu nas fazendas de café foi um processo lento, alcançado pela pertinácia de cafeicultores empenhados na solução de seu maior problema: a falta de mão de obra, agravada primeiro pela proibição do tráfico e depois pela abolição. As primeiras tentativas que procuravam subjugar imigrante a um sistema renovado da velha parceria provocaram reclamações consulares e escândalos na imprensa europeia, a que os brasileiros são especialmente sensíveis. Eram prematuras porque, apesar das condições de penúria prevalecente na Europa, o imigrante não aceitava a coexistência com o escravo. Somente após a abolição, estabeleceu-se uma onda regular e ponderável de provimento de mão de obra europeia, que, em fins do século passado, atingia a 803 mil trabalhadores, sendo 577 mil provenientes da Itália.

Os primeiros brasileiros conscientes de si, segundo Darcy Ribeiro, foram os mamelucos, esse brasilíndio, mestiço na carne e no espírito, que, não podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais – que ele desprezava –, nem com os europeus – que os desprezavam –, via-se na pretensão de ser o que não era e não existia: o brasileiro.

O africano que chegou ao Brasil teve sua identidade negada e marginalizada, tornando-se um ser sem identidade. O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da “ninguendade” de não índios, não europeus e não negros, que eles se veem forçados a criar a sua própria identidade.

Se nascemos ninguém, recusando a mãe índia ou a mãe preta e rejeitados pelo pai português (o europeu), é dialeticamente de nossa “ninguendade”, do não ser, que os brasileiros se ergueram como um dos povos hoje mais homogêneos linguística e culturalmente e, também, um dos mais coesos socialmente do ponto de vista de não se abrigar aqui, por exemplo, nenhum contingente separatista. De uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, nasceu, pois, uma nova identidade étnico-social, a de brasileiros, um povo até hoje na dura busca de sua identidade.

“Temos aqui duas instâncias. A do ser formado dentro de uma etnia, sempre irredutível por sua própria natureza que amarga o destino do exilado, do desterrado, forçado a sobreviver no que se sabia ser uma comunidade de estranhos, estrangeiros ele a ela, sozinho ele mesmo. A outra de ser igualmente desgarrado, como cria da terra, que não cabia, porém, nas entidades étnicas aqui constituídas, repelido por elas como um estranho, vivendo à procura de sua identidade. O que se abre para ele é o espaço da ambiguidade. Sabendo-se outro, tem dentro de sua consciência de se fazer de novo, acercando-se dos seus similares outros, compor com eles um nós coletivo viável. Muito esforço custaria definir essa entidade nova como humana, se possível melhor do que todas as outras. Só por esse tortuoso caminho deixariam de ser pessoas isoladas como ninguém aos olhos de todos.” (pg 99)

Darcy Ribeiro explica em seu livro os diversos brasis, para se entender a cultura brasileira. Após um processo de adaptação que absorve quatro séculos, emergem as variantes principais da cultura brasileira. Dão-se os seus primeiros passos: a cultura brasileira caipira, a cultura camponesa, a cultura crioula, a cabocla e a cultura sertaneja.

A cultura caipira abrangeu a população das áreas dos mamelucos paulistas. Foi formada, inicialmente, pela preia de índios para a venda. Passou pela era da mineração de ouro e diamantes. Depois, pela da cafeicultura e da industrialização.

Com feições caipiras, também surgiu a cultura gaúcha dos pastoreios nas campinas do sul, bem como suas duas variantes: a matuta-açoriana e a gringo-caipira, formada por imigrantes alemães e italianos. Já a cultura cabocla englobou populações da Amazônia, engajadas na coleta de drogas da mata e seiva dos seringais.

A cultura crioula abrangeu as comunidades da faixa de terras férteis do Nordeste, regidas pelo engenho açucareiro. Por fim, a cultura sertaneja, que se desenvolveu na extensão dos currais de gado do nordeste até o cerrado do Centro-oeste.

Darcy conclui que a nova Roma é o Brasil. Uma Roma lavada com iberos, com o sangue índio, lavada em sangue negro, melhor, tropical, e que está chamada a representar um importante papel no mundo. E esse livro mostra isso lenta e cuidadosamente.

“O Povo Brasileiro – A formação e o sentido do Brasil”, de Darcy Ribeiro, deveria ser um livro de cabeceira de todos os brasileiros. Nenhum povo vive sem uma teoria de si mesmo. Precisamos compreender quem somos e o que somos e qual será a importância de nosso país. Talvez seja uma tarefa dura, mas essencial para que nossa história seja repensada e quem sabe construirmos uma narrativa positiva de nós mesmos agregando valores humanos e solidários e difundirmos essa narrativa no cenário mundial. Indico “O Povo Brasileiro – A formação e o sentido do Brasil” como um livro essencial que merece um lugar de “HONRA” não só em sua estante, mas em todos os momentos de sua vida.


Data: 13 maio 2019 (Atualizado: 13 de maio de 2019) | Tags: Crônica


< Identidade – entrevista a Benedetto Vecchi A Relíquia >
O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil
autor: Darcy Ribeiro
editora: Global
gênero: Crônica;

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