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Genesis

Se existe uma profissão à qual todos nós devemos ser gratos é a profissão de fotógrafo. Essa galera se mete em lugares onde nós nunca imaginamos a hipótese de estar. Pense em um fotógrafo cobrindo uma guerra. No meio daquela profusão de balas perdidas, o cara está fazendo uma cobertura e arriscando a vida para que possamos ver a temperatura das ações humanas. Vendo o pior e poucas vezes o melhor dos seres humanos. Às vezes, um olhar do fotografado expressa inúmeros sentimentos captados por aqueles que estão vendo a fotografia.

A fotografia é o instrumento que mais se aproxima do que denominamos realidade, pois o objeto retratado se aproxima muito do que vemos fisicamente. No entanto, a arte fotográfica tem como objetivo mostrar o que não é possível ver diretamente: ações, reações, sentimentos, pensamentos. E o fotógrafo está onde eu e você jamais imaginaríamos estar.

Sebastião Salgado está ligado ao fotojornalismo independente, uma forma de trabalho que teve início logo após a Segunda Guerra Mundial, na França. Os fotógrafos engajados nesse tipo de ação realizavam suas reportagens e, filiados a agências de imagens, circulavam seus trabalhos em publicações do mundo todo, sem restringir a circulação de seu tra­balho a apenas um jornal ou revista.

As reportagens de Sebastião Salgado questionaram, por muitos anos, a desequilibrada relação política e econômica entre diferentes esferas so­ciais, bem como entre as duras realidades de quem trabalha no campo ou na terra em diferentes países.

Por isso, o ofício do fotografo é sobretudo estar onde ninguém nunca esteve. É ver o que ninguém nunca viu. Principalmente em se tratando de fotojornalismo. Em 1979, quando estava na renomada Magnum (fundada por Robert Capa, cuja biografia temos aqui no site), foi o único repórter fotográfico a registrar o atentado a tiros cometido por John Hinckley Jr. contra o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, no dia 30 de março de 1981, em Washington. O cara estava lá. É como se as situações chamassem o fotógrafo dizendo: “Fique aí porque uma confusão está prestes a acontecer”.

“Trabalhadores” (1996), “Terra” (1997), “Serra Pelada” (1999), “Outras Américas” (1999), “Retratos de Crianças do Êxodo” (2000), “Êxodos” (2000), “Um Incerto Estado de Graça” (2004), “O Berço da Desigualdade” (2005), “África” (2007) e “Genesis (2013) são considerados por muitos um tributo à dignidade e à resistência humana.

Hoje falaremos especificamente do seu maravilhoso livro “Genesis”. Nesse trabalho, Sebastião Salgado dá um cavalo de pau em sua carreira, passando de suas abordagens da miséria humana, onde sempre mostrou o sofrimento humano, para uma abordagem de exuberantes ambientes naturais do planeta.

 O projeto acontece após os efeitos do genocídio de seu livro “Êxodos” (2000). Na elaboração desse projeto de seis anos sobre os refugiados, Salgado mostrou seu desânimo: “Eu havia enfrentado nossa espécie da pior maneira e mais violenta e deixado de acreditar que ela poderia ser salva”. 

“...vi tanto sofrimento, ódio e violência ao longo das reportagens para Êxodos que saí muito abalado. Mas não me arrependo de tê-las feito. 'Diante de uma atrocidade, o que constitui uma boa foto?', às vezes me perguntam. Minha resposta cabe em poucas palavras: a fotografia é a minha linguagem. O fotógrafo está ali para ficar quieto, quaisquer que sejam as situações, ele está ali para ver e fotografar. É através da fotografa que trabalho, que me expresso. É através dela que vivo" (SALGADO & FRANCQ, 2014, Da minha terra à Terra. São Paulo: Paralela p. 93)

Em “Genesis”, o fotógrafo brasileiro documentou imagens de animais e paisagens naturais. Ele associa essa decisão com a profunda desesperança que se apoderou dele ao cobrir o genocídio em Ruanda em 1994, durante o qual pelo menos 800.000 pessoas foram mortas. 

A palavra “fotografar” vem do grego “escrever com a luz”: a luz é vista contemplada, pelos olhos e a luz que emana desses faróis portadores de energia. Com sua fotografia documental, de um preto e branco puríssimo, um traço autoral em suas abordagens, sobretudo no manejo da fotografia em preto e branco. A técnica de Sebastião Salgado é pautada em cliques em momentos essenciais, disparadas em situações cruciais. Em um clique, revela-se o drama ao redor impactando a situação observada, a situação em si, o que interessa é o contexto, o impacto do momento retratado. Em uma entrevista ao jornal El País, Salgado disse:

“O fotógrafo deve transmitir o que seu olho vê no momento de disparar, é preciso romper os limites da câmera. E ver o que os outros fazem não significa nada, cada um tem suas luzes interiores. A fotografia é feita com o passado de cada um, com sua ideologia. Eu trabalhei na Magnum com grandes fotógrafos, mas as afinidades eram mais pessoas do que técnicas.” (https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/20/eps/1558350781_612997.html)

A palavra “genesis” vem do grego e significa “origem”, “nascimento”, ”criação”, e nomeia o primeiro livro da Bíblia. Segundo Salgado, a escolha desse nome não está ligada ao tema bíblico, mas ao início da Terra na “versão científica”, quando ela teria sido moldada por erupções e terremotos que acabaram por dar origem à vida. Apesar da sua declaração, é impossível não estabelecer ligações do seu novo trabalho com esse momento da narrativa judaico-cristã, especialmente no trecho anterior à aparição do primeiro homem, quando a Terra era um paraíso – literalmente. Vemos nessas fotos um conceito mítico. E sem dívida alguma chega a tirar o fôlego de tanta beleza.

A ideia de seu tema “Genesis” era seguir os passos de Charles Darwin nas ilhas Galápagos, no Equador – lugar onde Darwin terminou sua expedição (1831-1836) para pesquisar a origem das espécies a bordo do barco Beagle. No livro das fotos da coleção “Genesis”, Salgado disse que foi a Galápagos para tentar entender um pouco o que Darwin viu ali.

O uso do preto e branco, a composição, a tonalidade, a estética barroca e os efeitos dramáticos que Salgado empregou em seus trabalhos anteriores são todos usados ​​em “Genesis”, uma tentativa de nos mostrar lugares no planeta que permanecem intocados pela urbanização. 

Em seu primeiro dia de trabalho, Salgado visitou uma das Ilhas Galápagos, no Pacífico, aos pés do vulcão Alcedo, e encontrou uma tartaruga da espécie que dá nome ao arquipélago equatorial. 

O fotógrafo recordou do primeiro animal que teve diante de suas lentes no projeto, uma tartaruga-gigante-de-galápagos. Diante da foto imponente da tartaruga, que chega a medir 1,5 metro e pesar 250 quilos, ele conta que o primeiro contato não foi receptivo. "Comecei a andar na direção dela, e ela não gostou. Quando passei a caminhar lentamente para trás, respeitando o território, ela passou a me aceitar.” (http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/09/sebastiao-salgado-narra-momentos-impressionantes-do-projeto-genesis.html)

 

 

A fotografia dos filhotes de elefante-marinho, registrada numa das praias da baía de Saint Andrews, Geórgia do Sul, ilustra o universo de possibilidades gerado pela imaginação criativa combinada com um olhar sensível e apurado de um fotógrafo como Sebastião Salgado.

 

No projeto “Genesis”, Sebastião Salgado apresenta um universo que merece ser preservado. Os povos indígenas de diferentes regiões do planeta fazem parte deste mundo que merece ser preservado e é definido por Salgado como “primitivo”.  Salgado justifica a escolha: “A humanidade era originalmente muito forte e muito rica em algo que eventualmente perdemos com o tempo, quando nos tornamos urbanos: nossos instintos. Os instintos nos permitem sentir e prever algumas coisas, uma mudança na temperatura ou nos fenômenos climáticos, através da observação do comportamento dos animais. Na realidade, estamos abandonando nosso planeta, porque a cidade é outro planeta”.

No livro “Genesis”, podemos ver animais e vulcões, leões-marinhos e baleias na Antártida e no Atlântico Sul; jacarés e onças no Brasil, elefantes africanos, a tribo dos Zo’ é isolada nas profundezas da selva amazônica, rebanhos de renas no Círculo Polar, icebergues na Antártida, etc.

Para documentar a vida de populações indígenas, habitou vários meses junto dos índios Yanomani e Caiapó, da Amazónia, dos pigmeus das florestas equatoriais do Congo, dos bosquímanos do deserto do Kalahari, na África do Sul, e de tribos do deserto da Namíbia e das florestas da Nova Guiné, mostrando como vivem em total harmonia com o meio ambiente.

 

Perseguidos por caçadores furtivos na Zâmbia, os elefantes (Loxodonta africana) têm medo dos homens e dos veículos, e geralmente entram rapidamente no mato, assustados. Parque Nacional de Kafue, Zâmbia. 2010.

 

A fotografia de Salgado não é óbvia, tem entrelinhas, tem mistério. É beleza, mas também é conteúdo. A fotografia tem uma capacidade de aproximar sujeitos, lugares, histórias, independentemente de suas localizações. Os livros do fotógrafo possuem legendas que, entre outras coisas, também localizam as imagens em termos territoriais. Conhecer a obra fotográfica de Sebastião Salgado significa que não podemos engolir as imagens. É preciso perder tempo com elas.

Vivemos em uma sociedade imagética. Tantas fotografias não existem à toa, há uma popularização e uma inserção vigorosa da fotografia nos diferentes setores da sociedade, transformando a maioria dos sujeitos em fotógrafos amadores e em partícipes de imagens fotográficas.

Na fotografia existem diferentes concepções de uso. As ideias de fotografia-documento, fotografia-arte, fotografia-linguagem, fotografia-representação, fotografia-expressão e fotografia-espetáculo são algumas das reflexões acerca desses conceitos.

 No livro ”Genesis”, existem encadeamentos em que se estabelece narrativas imagéticas, um diálogo entre a geografia e a arte. O segredo de seu senso estético encontra-se talvez nesse depoimento. Mas o seu sucesso deve-se a Lélia Wanick Salgado, é ela que edita as imagens, é ela que organiza e costura as narrativas imanentes às fotografias. O conceito é dela. O clique é dele, mas a conclusão é dela.

Assim como Lennon e Mc Cartney, Mick Jagger e Keith Richards, Sebastião Salgado e Lélia. No caso dos dois últimos, Sebastião é clique e Lélia é o conceito. Sem Lélia não haveria Sebastião.

As imagens de ”Genesis” surpreendem e encantam porque, além de tecnicamente perfeitas e esteticamente belas, refletem a nossa distância para com a natureza e povos distantes dos grandes centros. E nos fazem refletir sobre o nosso desconhecimento do mundo, do diferente, de uma visão que está além daquilo que podemos prever e muitas vezes sequer podemos imaginar. É aí que eu chamo a atenção sobre esse ofício tão nobre quanto a fotografia.

Fotografar natureza, por exemplo, exige a espera, aguardar o momento certo para conseguir a pose e a composição ideais sem controle sobre as condições de luz e movimento. A força da imprevisibilidade. “Genesis” é uma dessas obras pelas quais podemos estudar um pouco de História, mais especificamente uma história da vida segundo impressões da natureza. Fauna e flora eternizadas em registros capazes de nos fazer imaginar além do conhecido.

O trabalho fotográfico como ”Genesis” nos remete às experiências de vida desse grande fotógrafo, que une seus instintos na busca pelas melhores imagens.

O livro ”Genesis”, publicado pela editora Taschen, é uma viagem em busca do paraíso perdido, que um dia existiu, mas a modernidade se incumbiu de nos afastar da natureza. No entanto, o fotógrafo descobre, em meio às suas andanças pelo mundo, verdadeiros paraísos terrestres e aquáticas ainda intocadas pelo homem.

Em sua autobiografia, Salgado declara que a luz natural e as montanhas de Minas Gerais influenciaram sua capacidade de enxergar. 

“Na estação chuvosa, quando tempestades fenomenais começam a se formar, o céu começa a se encher de nuvens. Eu nasci com imagens de raios de luz que atravessam os céus, carregados de pesadas nuvens escuras. Essa luz permeia minhas imagens. Na verdade, vivi dentro deles antes mesmo de começar a produzi-los. Eu também cresci com luz de fundo: quando eu era criança, por causa da minha pele clara, eu sempre fui obrigado a usar um chapéu ou sentar embaixo de uma árvore. Naquela época não havia nada como protetor solar. E eu costumava ver meu pai se aproximando de mim ao sol, iluminado por trás.”

”Genesis”, de Sebastião Salgado, é uma obra que merece um lugar na sua vida.

 


Data: 13 agosto 2019 (Atualizado: 13 de agosto de 2019) | Tags: Fotografia


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