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A marca humana

A marca humana é um romance escrito em “camadas” de pequenas tragédias. Conta a história de um professor cujo mundo desaba depois que ele é acusado de racismo. Coleman Silk é professor de grego e latim e, por várias vezes, reitor da faculdade na Athena College, no oeste de Massachusetts, onde mudou os hábitos acadêmicos da instituição impondo a competência em primeiro plano.

Como de costume nos romances de Philip Roth, uma pequena sutileza, ou melhor, um pequeno deslize desencadeia todo um processo trágico, só que dessa vez através das forças do “politicamente correto” e do ódio. Esse mal-entendido acontece quando o protagonista, o professor Coleman Silk, percebe que dois dos estudantes que se inscreveram para o seminário nunca aparecem para a aula, e ele resmunga em voz alta: "Será que eles existem ou são fantasmas?" A palavra “Spooks” (fantasmas que assustam) é um termo pejorativo, usado para se referir aos negros. No entanto, Silk se referia ao sentido espectral da palavra, ou seja, “ausência”. Suas tentativas de resolver a controvérsia são recebidas com hostilidade na comunidade acadêmica e o professor se demite, levando consigo a raiva de quem é acusado injustamente.

A ironia de Coleman ser chamado de racista, enquanto ele próprio fora vítima de discriminação, atravessa o romance. É o dispositivo que Roth utiliza para retratar a América dos anos 1950 até o final do século.

A vida desse professor na aposentadoria forçada está agora preenchida com mais uma revolta: o falecimento de sua mulher, Iris Silk, aos 64 anos de idade, uma mulher com personalidade forte, pintora abstracionista, que fora militante contra a guerra do Vietnã e possuidora de uma biografia intensa. Para ele: “... queriam me matar, mas quem acabou morrendo foi ela.”

Sua vida passou a consistir em reuniões, audiências e depoimentos, cartas entregues a funcionários e comissões de docentes da Universidade, a entrada de um advogado negro que se oferecera pra defender gratuitamente os dois alunos. Uma cronologia dos horrores.

E nesse enredo, aparece um recorrente personagem das ficções de Roth - Nathan Zuckerman – figura conhecida de outras obras. Antes dos eventos da história, Nathan Zuckerman teve câncer de próstata, foi operado, ficando impotente e incontinente. Agora, ele embarcou na parte final de sua vida e vive como um recluso em Berkshires, na Nova Inglaterra, e é vizinho de Coleman Silk. Coleman pede para que Zuckerman, um autor profissional, escreva um livro sobre todo o assunto, mas este se recusa em um primeiro momento, mas, aos poucos, tornam-se amigos e ele aceita.

Gradualmente, nós aprendemos sobre o passado de Coleman Silk Zuckerman é um grande observador, com uma curiosidade sem fim, e quando sua solidão é interrompida por encontros casuais com pessoas provocativas e eventos, ele se alimenta deles de uma forma voraz. Os detalhes da vida são, afinal, o sustento de qualquer autor, e Zuckerman tem um prazer quase voyeurístico nas histórias que ele pode pegar de segunda mão.

Ele é apresentado ao leitor como um judeu assimilado, casado com Iris Silk e tem quatro filhos. Todos têm certas reservas ao pai. Mas aos poucos, o leitor guiado pelas descobertas de Zuckerman vai constatando que ninguém nessa história é o que parece ser. Segredos são desvendados e as mentiras de vários personagens, dentre eles o próprio Silk, são reveladas.

Zuckerman descobre uma vida que é ao mesmo tempo fascinante e única, ainda que profundamente representativa de um impulso essencial norte-americano, ele explora as fronteiras ambíguas entre a verdade e a mentira; o passado e o presente; a percepção e a realidade. Quanto mais entendemos profundamente Coleman Silk mais percebemos a ironia dolorosa – ou talvez possamos chamar de carma – de sua situação. Os enredos do livro põem em movimento a grande tragédia em torno de uma órbita predestinada de uma tragédia grega.

Em alguns momentos vemos ao longo do romance o caos de identidades e papéis em um estado de constante flutuação, mudança e reinvenção. A marca humana é sobretudo um grande romance vindo da experiência: as questões de raça e etnia, grupo versus identidade pessoal. Coleman Silk esconde um segredo, uma marca, uma impureza, crueldade, abuso, erro. Ela está em todos nós. “Os sonhos de pureza não passam de uma forma de impureza.” Todos nós carregamos dentro de nós as nossas marcas.

Um livro brilhante que tem a “marca humana” de Phillip Roth.


Data: 08 agosto 2016 (Atualizado: 08 de agosto de 2016) | Tags: Drama


< Paulo Leminski: o bandido que sabia latim A distância entre nós >
A marca humana
autor: Philip Roth
editora: Cia. das Letras
tradutor: Paulo Henriques Britto
gênero: Drama;

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