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As Rãs

“As Rãs”, de Aristófanes, foi escrita e encenada pela primeira vez em 405 a.C. Sua escrita e produção coincidem com a Guerra do Peloponeso, travada entre as cidades gregas de Atenas e Esparta. O protagonista da peça é o deus grego Dionísio, e a trama narra suas tentativas de ressuscitar o dramaturgo Eurípedes (sempre ele). “As  Rãs” foi a resposta de Aristófanes ao estado de gênero trágico após a morte de Eurípedes.

O coro das Rãs representa a transição do mundo dos vivos e o dos mortos através do canto repetitivo, e simboliza a superficialidade que Dionísio precisa para alcançar o mundo da verdadeira arte.

Vamos à peça?

Desde o início, a peça explora o tema das aparências enganosas. Dionísio é retratado como um deus covarde que veste um manto e uma pele de leão para se disfarçar de seu meio-irmão Héracles (equivalente ao Hércules romano), tentando, na prática, parecer mais corajoso e intimidador do que realmente é. Na minha opinião, o humor já começa aí. A razão é simples: sendo um deus, Dionísio subverte as expectativas do público, pois dele se esperaria coragem, poder e astúcia divinos — e não o comportamento de um personagem covarde e enganador. Assim, a peça nos mostra que as aparências — assim como os títulos — podem ser enganosas.

A peça começa com Dionísio chamando seu escravo Xântias para viajarem até Hades. Na mitologia grega, Hades é conhecido como o reino do mundo inferior, o reino dos mortos: um lugar sombrio, governado pelo deus  Plutão) e por sua esposa, Perséfones. É para lá que as almas se dirigem após a morte, conduzidas pelo barqueiro Caronte através do rio Estige.

Dionísio segue então em direção à casa de Héracles. Ele veste um manto amarelo e uma pele de leão, carrega uma grande mochila e brinca dizendo que, se ninguém o ajudar a tirá-la de seus ombros, ele irá explodir.  Xântias reclama que, ao menos pelo fato de carregar todo o peso, deveria ter o direito de fazer piadas sobre a situação. Dionísio, no entanto, desaprova.

“Xântias: Então, porque é que fui obrigado a transportar esta bagagem se não faço nada do que costumam a fazer Frínico e Lícis e Amípsias, de cada vez que que transportam bagagem numa comédia?

Dionísio:  Não o faças, visto que eu , na minha qualidade de espectador quando assisto a uma dessas habilidades, sinto mais velho mais de um ano.

Xântias: Ó três vezes infeliz esta nuca, porque está aflita e não dirá nada de engraçado!” (pág. 29; pág. 30)

Dionísio diz que as peças desses poetas (Frínico, Lícis e Amípsias) são horríveis. Dionísio e Xântias discutem, parando apenas quando chegam à casa de Héracles.

Dionísio conversa com Héracles e lhe pede ajuda em sua tentativa de ressuscitar o falecido Eurípedes, com o objetivo de restaurar o reino da tragédia à sua antiga glória. Ele busca conselho de seu meio-irmão Héracles — ambos filhos de Zeus — para saber como encontrar Eurípedes no mundo dos mortos.  O conselho dado por Héracles é o seguinte: como chegar até Eurípedes no Hades:

“Dionísio: Não troces meu irmão, não, porque estou realmente mal. Tal o desejo que me consome.

Héracles: D que espécie irmãozinho?

Dionísio: Não sou capaz de me exprimir. Mas dir-to-ei, por meio de enigmas. Já alguma vez tiveste um desejo súbito de caldo de feijão?

Héracles: De feijão? Oh, oh, oh! Dez mil vezes, pelo menos na minha vida.

Dionísio: Faço-me entender, ou direi de outra maneira?

Héracles: Não decerto, pelo que tioca o caldo de feijão, porque compreendo perfeitamente.

Dionísio : Tal é então a saudade que me morde de Eurípedes.

Héracles: É isso, de que morreu?

Dionísio: E ninguém de entre os homens poderá persuadir-me a não ir ter com ele.

Héracles: Por ventura , ao Hades, lá embaixo?

Dionísio: Sim, por Zeus, e até mais abaixo, se há.

Héracles: Com que intenção?

Dionísio: Preciso de um poeta competente, “ porque tais já não existem, e os que existem são maus”.

Héracles: O que? Não está vivo Iofonte?

Dionísio: Isso é com certeza ainda coisa boa que me resta, se de fato o é, porque nem isso sei bem como é.

Héracles: E então não há de trazer à superfície Sófocles, que está antes de Eurípedes, se é que tens de trazer alguém?

Dionísio: Antes de tomar de parte Iofonte sozinho e de examinar o que ele faz sem Sófocles. E, que por outro lado, Eurípedes, que é um trapaceiro, tentará mesmo fugir para aqui, na minha companhia. Quanto a Sófocles, se tinha bom feitio aqui, bom feito tem lá.

Héracles: E Agatão onde está?

Dionísio: Partiu, deixando-me. Bom poeta de que os amigos têm saudades!

Héracles: Para que paragens foi o infeliz?

Dionísio: Para vida regalada das bem-aventuranças.

Héracles: E Xénocles?

Dionísio: Morra ele, por Zeu.

Héracles: E Pitângelo?

Xântias: E a meu respeito nenhuma palavra, enquanto estou assim de ombro tão esmagado.

Héracles: Então não há aqui outros rapazolas, que fazem tragédias. Mais de dez mil, mais tagarelas que Eurípedes, um bom estádio?” (pág. 35; pág. 36; pág. 37; pág. 38)

Dionísio pergunta a Héracles como chegar a Hades.

“Héracles:  Oh infeliz! Pois tu ousarás ir até lá?

Dionísio: E tu, nem mais uma palavra a esse respeito, mas conta-me qual o caminho por onde chegaremos mais depressa ao Hades lá embaixo! E não indiques um nem quente nem demasiado frio.

Héracles: Ora vá! Qual o que hei de dizer-te em primeiro lugar? Qual? Há um que parte a corda e do banquinho... se te dependurares.

Dionísio: Basta. Esse que falas é sufocante.

Héracles: Mas há um atalho curto, de terra batida, o do almofariz

Dionísio: estás a dizer cicuta?

Héracles: exatamente.

Dionísio: Esse é frio e desagradável, logo as pernas ficam insensíveis.

Héracles: Queres que eu te diga um rápido e a descer?

Dionísio: Sim, por Zeus, porque não sou andarilho

Héracles: Desce, pois, ao Ceramico.

Dionísio: e a seguir?

Héracles:  Sobe a torre alta…

Dionísio: que faço?

Observa daí a partida da corrida de tochas. E depois, quando os espectadores dizem: “Lá vão eles!” então, vai tu também.

Dionísio: para onde?

Héracles: Para baixo.

Dionísio: Mas destruirei duas ou três folhinhas do meu cérebro. Não é por esse caminho que seguirei.

Héracles: E então?

Dionísio: Irei por aqueles que tu seguiste, na descida.

 Héracles: Mas há uma grande navegação. Imediatamente chegarás a um pântano muito grande e muito profundo.

Dionísio: E depois como é que atravessarei ?

Héracles:  Num banquito como isto, um velho marinheiro atravessar-te-ás, a troco do pagamento de dois óbolos.

Dionísio: Ui! Como são coisa poderosa em toda a parte os dois óbolos. Como é que lá chegaram também?

Héracles: Foi Teseu que os levou. Depois disso , verás serpentes e feras aos milhares, de meter medo!

Dionísio: Não me impressiones nem me aterrorizes, porque mão me farás desistir.

Héracles: Depois, muito lodo e uma corrente permanente  de excrementos e dentro dela todo aquele que fez mal a um hóspede e o que possuiu um garoto e lhe negou o dinheiro prometido ou deu uma sova na mãe ou partiu os queixos ao pai ou fez um juramento falso ou fez copiar uma fala de Mórsimo.

Dionísio: Pelos deuses, era preciso juntar a esses todo aquele que aprendeu a pírrica de Cinésias.

Héracles: Em seguida, rodear-te-á um sopro de flautas e tu verás uma luz muito bela como aqui e canteirtos de mirto e tíasos felizes de homens e mulheres e um bater de palmas abundante.

Dionísio: E esses quem são?

Héracles: Os iniciados nos mistérios

Xântias Por Zeus, eu é que faço papel de burro dos mistérios, mas não suportarei a carga por mais tempos. (põem por terra a bagagem)

Héracles: Eles te dirão tudo que precisares de saber, porque vivem muito perto da estrada, nas portas de Plutão. E muitas felicidades, meu irmão!! (Reentra)” (pág. 40; pág. 41; pág. 42; pág. 43; pág. 44)

Héracles sugere uma rota para chegar ao Hades. Como já havia descido anteriormente ao mundo dos mortos, ele descreve um roteiro que Dionísio deverá seguir: será necessário encontrar um morto e negociar, em dracmas, o valor da travessia até o outro lado, em um pequeno barco que o conduzirá ao encontro de Caronte.

“Caronte: Quem vai para o Repouso, depois de males e trabalhos? Quem para a planura do Letes ou para Tosquia do Burro ou para os Cerbérios ou para Corvos ou para Ténaro?

Dionísio: Eu!

Caronte: Embarca então depressa!

Dionísios: Tu pensas parar nos Corvos, realmente?

Caronte: Sim por Zeus, por tua causa. Embarca já!

Dionísio (a Xântia): Rapaz por aqui.

 Caronte: Um escravo eu não transporto, se ele não combateu no mar com risco da pele.

Xântias: Por Zeus, eu não combati, porque estava doente dos olhos.

Caronte: Então corre a volta do pântano.

Xântias E onde é que vos esperarei?

Caronte: Junto a Pedra da Secura, na paragem

Dionísio: compreendes?

Xântias: Compreendo perfeitamente. Infeliz de mim, com quem me teria encontrado, ao sair de casa? (afasta-se)

Caronte (para Dionísio): Senta-se ao remo! Se alguém ainda quer viajar, que se apresse.(para Dionísio) Ó tu, que fazes?

Dionísio: Que faço? Que outra coisa senão sentar-me ao remo, onde mandaste que me sentasse?

Caronte: Então não te sentará aqui o barrigudo?

Dionísio: pronto!

Caronte: Não estenderá a mão e remarás?

Dionísio: pronto!

Caronte: Não continues a fazer-te de engraçado, mas apoia e rema com vigor!

Mas como é que poderei eu que sou inexperiente, ináutico insaliminio, apesar tudo rema?

Caronte: Da maneira mais fácil, porque ouvirás cantos belíssimos logo que pela primeira vez, deres uma remada.

Dionísio: De quem?

Caronte: da rás-cisnes, cantos de pasmar”. (pág. 47; pág. 48; pág. 48; pág. 49)

Dionísio se defronta, ao longe, com o coro das Rãs. Coaxando alto, os sapos entoam uma canção sobre os “pântanos e charcos” onde vivem e sobre o incessante canto que ecoa naquele ambiente. Irritado com a distração, Dionísio reclama da canção das Rãs, classificando-a como entediante. A reação não agrada ao coro, que responde afirmando ser célebre por seus talentos musicais.

“Rãs: Antes, mais e mais cantemos, se alguma vez já em dias soalheiros, por meio do caniço saltámos e do junco, na alegria do nosso canto, em melodias por entre mergulhos e mergulhos, ou fugindo à chuva de Zeus, no húmido fundo uma dança, ligeiras entoamos ao som das bolhas de ar a rebentar.” (pág. 52)

Dionísio chega, paga a Caronte pela travessia e reencontra Xântias. O escravo lembra Dionísio das palavras de Héracles, que advertira sobre o fato de o lugar estar repleto de feras perigosas. Nesse instante, Xântias pede que Dionísio se cale, pois acaba de avistar uma fera terrível:

“Xântias: E eis que, por Zeus, vejo uma fera enorme

 Dionísio: De que forma?

Xântia: Terrível. É que toma todas as formas. Ora é um boi, agora mesmo era um burro, agora a seguir é uma mulher , e muito boa.

 Dionísio: Onde está ela? Eis que vou com ela.

Xãntias: Mas já não é outra vez uma mulher, agora é um cão.

Dionísio: Então é Empusa.” (pág. 56)

Empusa é um espírito feminino na mitologia grega, capaz de se metamorfosear em formas belas para seduzir e aterrorizar as pessoas, sugando o sangue de suas vítimas — sendo considerada uma das bases do vampiro moderno. Ao vê-la, Xântia consegue afugentar a criatura, e Dionísio sente-se aliviado por ter se livrado da ameaça.

No entanto, Dionísio e Xântias ouvem som de flautas, acompanhadas por pessoas segurando tochas e entoando um canto: 

“Coro: “... Oh, Iaco, oh Iaco, astro que traz a luz da festa noturna. Brilha de archotes o prado. Treme o joelho dos velhos e sob a dança sagrada, varrem os cuidados e os anos longos de suas idades antigas. E tu, brilhando com tua tocha faz avançar aqui para o prado florido e úmido, oh bem aventurado, a juventude que forma os teus coros. (pág. 61)

Na mitologia grega, Iaco é uma divindade menor — um daímon — fundamental nos Mistérios de Elêusis, associada à alegria ritual e à condução das procissões sagradas. Costuma ser representado como um jovem portando tochas, líder dos iniciados, e por vezes é considerado filho de Zeus e Deméter, simbolizando a alegria ritualística e estabelecendo uma estreita relação com Dionísio.

Xântias deduz que se trate dos iniciados — o coro dos iniciados — mencionados anteriormente por Héracles. O líder dos iniciados ordena que se sentem para comer a carne e beber o vinho do sacrifício. Em seguida, exige que os não iniciados orem, permaneçam em silêncio e se mantenham escondidos até o término da procissão sagrada.

Após o banquete, o coro dos iniciados canta e dança em homenagem a Perséfone, Deméter e Iaco.

“Coro: Deméter das castas orgias soberanas, vem até a nós, e salva o teu coro! E que eu possa em segurança o dia inteiro folgar e dançar! E dizer muitas coisas de rir e muitas coisas sérias. E que depois dos gracejos e troças, dignos da tua festa, eu vença e seja coroado com as fitas da vitória!” (pág. 63)

Dionísio e Xântias observam a alegria dos iniciados e, aproveitando o momento, Dionísio pede a eles indicações para chegar ao palácio de Plutão. Ao chegarem, são recebidos por Éaco, o temível porteiro de Hades. Dionísio se apresenta como Héracles, mas gagueja, denunciando a farsa.

“Éaco: Quem está lá?

Dionísio: Héracles o forte!

Éaco: Ó infame, desavergonhado e atrevido que tu és! E safado, muito safado, safadíssimo, tu que expulsaste o nosso cão Cérbero, o levaste, estrangulando-o, e te puseste em fuga com ele, o cão que que eu guardava. Mas agora estás bem agarrado. Tal é o rochedo de negro coração de Estige  e apedra do Aqueronte, a pingar sangue, que te guardam e os cães que correm à volta do Cocito e Esquidna de cem cabeças que rasgará as tuas entranhas de cem cabeças que rasgará as tuas entranhas. E a morena Tartésia agarrar-se-á aos teus pulmões. Os teus dois rins ensanguentados. Juntamente com as suas vísceras despedaçá-los-ão as Górgonas Titrásias “ que eu vou buscar neste passo de corrida.

Xântias: Ó tu que fazes?

 Dionísio: Já fiz... chama o deus.” (pág. 67)

Éaco amaldiçoa “Héracles” — que, na verdade, é Dionísio disfarçado — chamando-o de criminoso desprezível por ter roubado Cérbero, e ameaça torturá-lo em retaliação. Em seguida, desaparece para buscar os instrumentos de tortura.

Surge aqui mais um momento de humor: figuras tradicionalmente intimidadoras como Héracles (equivalente ao Hércules romano) — e, por extensão, Dionísio, que se apresenta sob essa máscara heroica — mostram-se intimidadas por Éaco. A cena evidencia o contraste cômico entre aparência e essência, pois Dionísio, travestido de herói, revela-se covarde e inepto, acovardando-se diante das ameaças do porteiro do Hades.

 “Xântias:  Ò, o mais cobarde dos deuses e dos homens!” (pág. 68)

Dionísio cai no chão, aterrorizado, e ordena que Xântias troque de lugar com ele, ou seja, que se transforme em Héracles. A partir desse momento, o escravo não assume apenas a aparência do herói, mas também seu comportamento, apesar de sua condição servil. Xântias revela-se, assim, mais sagaz e destemido do que o próprio Dionísio.

“Bem-vindos a Hades!” Surge então a criada de Perséfone, que sai do palácio, cumprimenta Xântias — ainda disfarçado de Héracles — e anuncia que um banquete está pronto desde que Perséfone soube da chegada de Héracles.

“Criada: Ó caríssimo! Acabas de chegar, ó Héracles? Vem cá! A deusa desde que soube de sua chegada, logo mandou amassar pães, pôr cozer duas ou três panelas de sopa de feijão esmagado, assar um boi inteiro, fazer no forno bolos de mel e pastéis. Mas entra!”(pág. 69)

A criada pede que Dionísio leve a bagagem para dentro. Dionísio, incomodado com a posição subalterna em que acabou se encontrando, exige retomar o papel de Héracles. Xântias, então, devolve-lhe o disfarce do Héracles. É nesse momento que o coro intervém:

“Coro: Eis que é do homem com cabeça e senso e que muito navegou virar-se sempre para o bordo que estava bem, mais do que ficar hirto, com uma atitude fixa, à maneira de imagem pintada. Mas voltar-se para bordo mais agradável é próprio do homem hábil, um Terêmenes” (pág. 71)

Quando Dionísio acaba de se vestir novamente com o disfarce de Héracles, surgem duas estalajadeiras que o repreendem por ele ter comido toda a comida da hospedaria e saído sem pagar:

“Primeira Estalajadeira:  Plátana, Plátana, vem cá! O velhaco está aqui, aquele que uma vez entrou na estalagem e devorou dezesseis dos nossos pães.

Segunda Estalajadeira : Sim, por Zeus, é de fato ele mesmo.” (pág. 72)

Dionisio tenta persuadir Xântias a trocar de lugar com ele novamente. Xântias resiste, mas acaba cedendo quando Dionísio promete que não pedirá outra troca. Os dois mudam de roupa e, subitamente, Éaco retorna, acompanhado de escravos que carregam cordas e correntes. Ele ordena que amarrem Xântias, agora disfarçado de Héracles, e o castiguem. Dionísio, entusiasmado, incita os escravos a darem a “Héracles” o castigo que merece.

Xântias, ainda disfarçado de Héracles, propõe um acordo a Éaco:

“Xântias: Decerto, por Zeus! Se alguma vez eu aqui vim, quero morrer já, ou se te roubei coisa que valha um só fio de cabelo. Mas farei por ti uma nobre ação (indicando Dionísio). Pega neste escravo aqui e experimenta-o, e se descobrires que alguma vez te fiz mal, mata-me imediatamente.” (pág. 77)

Quando Éaco pergunta a Xântias de que maneira poderia torturar o seu escravo, Xântia usa a sua criatividade:

“Xântia: De todas as maneiras: liga-os a uma escada, suspende-o, bate-lhe com um chicote pontiagudo, arranca-lhe a pele, torce-lhe os membros, depois deita-lhe vinagre nas narinas, põe-lhe em cima de tijolos e tudo mais, com uma exceção: não lhes batas com alho poró nem cebolinhas novas” (pág. 78)

Não vendo saída, Dionísio revela sua verdadeira identidade, e Xântia diz:

“Xântiia: É o que eu digo. E muito mais deve ser chicoteado porque é um deus, não sentirá.” (pág. 79)

Éaco considera a sugestão uma boa ideia e passa a chicotear os dois. Como nenhum deles demonstra intimidação, ele decide então pedir a opinião de Perséfone:

“Éaco: Não por Deméter, não consigo saber qual de vocês dois é o deus. Mas entrai. O patrão conhecer-vos-á decerto, ele e Perséfone, porque são ambos deuses” (pág. 83)

Enquanto Dionísio, Xântias e Éaco partem para a casa de Hades, eles se deparam novamente com o coro dos iniciados, que passa a comentar a situação crítica de Atenas, oferecendo conselhos sobre como a cidade poderia ser melhorada. O coro implora por tolerância e suplica aos cidadãos que abandonem os maus costumes e retornem aos valores e hábitos das gerações passadas.

Em seguida, Xântias e um criado de Hades trocam fofocas sobre seus respectivos mestres, comentando preocupações comuns e manifestando a antipatia que nutrem por eles:

“Xântias: Gostas? Conta-me!

Criado: Mais do que isso! Sinto-me no paraíso, quando esconjuro às escondidas, o patrão.” (pág. 86)

Ouve-se um ruído vindo da casa de Hades. Trata-se de uma disputa entre duas almas mortas. As almas em questão são Eurípedes e Ésquilo, que disputam quem deve ocupar o trono da tragédia no Submundo (reino dos mortos). Descobrimos que,  por tradição, o maior dramaturgo falecido deve sentar-se em um trono colocado ao lado do governante do reino dos mortos, ou seja, Hades. Antes da chegada de Eurípedes ao mundo dos mortos, Ésquilo reinava absoluto. Agora que ambos estão mortos, os habitantes do Submundo encontram dificuldade em decidir quem merece o título de melhor “tragediógrafo”. Diante do impasse, eles organizam um concurso poético. E quem melhor para ser o juiz do que o próprio deus da tragédia, Dionísio? Antes do julgamento, o criado diz que, se a decisão fosse deixada para as almas do Submundo, Eurípedes sairia vencedor, pois o lugar é habitado por poucos homens respeitáveis.

“Criado: Ora, quando desceu, Eurípedes mostrou-se aos salteadores carteirista e aos parricidas e aos escava-muros, de que há no Hades multidão, e eles dando ouvidos às réplicas e truques e fintas, enlouqueceram e consideram-no o mais sábio. E ele, excitado apoderou-se do trono onde estava sentado Ésquiilo.” (pág. 89)

Eurípides e Ésquilo estão preparados para o verdadeiro “ultimate fight” teatral: o confronto em que ambos passam a criticar a arte um do outro. Eurípides é o primeiro a mostrar a que veio:

“Eurípedes: Conheço-o e há muito que o observo, a esse homem criador de selvagem, de linguagem arrogante, com boca sem freio, sem domínio, sem portas, poeta sem perífrases, que enfeixa vocábulos pomposos:

Esquilo: Verdade, ó filho da deusa...rural!  És tu então quem me diz isso, ó respingador de palavras vãs criado de coxos e serzidor de farrapos” (pág. 93; pág. 94)

A disputa não termina aí. Eurípides acusa Ésquilo de criar poucos personagens verdadeiramente realistas, enquanto Ésquilo responde que seus personagens idealizados são superiores aos de Eurípides, pois, em vez de serem meras réplicas de pessoas comuns, podem servir como modelos de virtude para as novas gerações.

À medida que o debate transcorre, Dionísio demonstra dificuldade em tomar partido. Por fim, propõe que os versos de ambos sejam literalmente pesados uns contra os outros. Eurípides e Ésquilo entram, então, em uma disputa frenética para conquistar as bênçãos de Dionísio.

Dionísio permanece hesitante diante do veredito final: precisa fazer uma escolha, pois o prêmio será levar o vencedor de volta à terra dos vivos. Nesse impasse, Dionísio concebe uma ideia que acredita ser capaz de salvar Atenas de sua iminente ruína.

“Dionísio: Para que a cidade se salve e celebre os coros. Por isso, aqueles dos dois que aconselhar à cidade uma  útil, esse penso leva-lo comigo. Para começar, então que opinião tem cada um de vós a respeito de Alcebíades. Porque a cidade tem um parto difícil” (pág. 133)

Ésquilo oferece a resposta mais prática, e Dionísio o escolhe, reconhecendo em seguida que ele é o autor mais próximo de seu próprio coração. Enquanto ambos se despedem, Eurípides repreende Dionísio:

“Dionísio: Eu? Decidi que Esquilo. E porque não?

Eurípedes: Acabando de cometer a mais vergonhosa ação, ainda olhas para mim?

Dionísio: Que há de vergonhoso, se não parece tal espectadores?

Eurípedes: Oh infeliz! Deixar-me-ei então morto?

Dionísio: “Quem sabe se viver é morrer, se respirar é manducar, e se dormir é um novel de lã?” (pág. 138)

Decisão tomada, chegou a hora da despedida. Plutão diz a Ésquilo:

“Plutão: Boa viagem, pois ó Esquilo, vai e salva a nossa cidade, com bons conselhos, e educa os ignorantes, porque eles são muitos. E leva isto a Cleofante. (Dá-lhe uma espada.) e isto aos provedores das finanças (Dá-lhe cordas), A Mirmex bem como Nicómaco. E isto a Arquénomo (Dá-lhe um copo de cicuta). E dizer-lhes eu venham depressa, eu, por Apolo, marcou-os com o ferro em brasa e, presos pelos pés, enviá-los-ei na companhia de Adimanto, filho de Leucólofas, e despachá-los-ei em breve para debaixo da terra.

Ésquilo: Fálo-ei. E tu dá o meu lugar a Sófocles para que ele o guarde e salve, para o caso de um dia eu aqui chegar, porque eu considero-o como segundo em sabedoria. Lembrar-te de que esse velhaco mentiroso e charlatão nunca se há de sentar no meu lugar que...o não queira. (pág. 14)

Qual é a mensagem de “As rãs”? Em primeiro lugar, a possibilidade de salvar a cidade ateniense por meio da tragédia. Fica claro que o objetivo de Dionísio é resgatar a boa tragédia ateniense. Atenas vivia então o desgaste da Guerra do Peloponeso contra Esparta, e Aristófanes faz de “As rãs” uma reflexão cômica, porém profundamente séria, sobre esse esgotamento coletivo. A cidade encontrava-se exaurida devido à guerra.

“As rãs” não é apenas uma comédia sobre a cidade ou sobre seus líderes, tampouco se limita a uma sátira aos cultos dos poetas. Trata-se, antes, de uma despedida elegante da grandeza de Atenas e de um apelo à recuperação de seus princípios fundadores. Essa conclusão não é originalmente minha, mas é uma leitura que endosso plenamente.

 “As Rãs” é, portanto, uma obra-prima e merece um lugar de “HONRA” na sua estante.


Data: 18 dezembro 2025 (Atualizado: 18 de dezembro de 2025) | Tags: Teatro, Comédia, Grega


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As Rãs
autor: Aristófanes
editora: Edições 70
tradutor: Américo Da Costa Ramalho
gênero: Comédia;,Grega;,Teatro;

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