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Os Possessos

Albert Camus é um autor recorrente aqui no site Bons Livros para Ler. Um autor que foi laureado com o Prêmio Nobel e, acreditem, venceu um Oscar de melhor filme em Orfeu Negro. Rodado no Brasil. Albert Camus é descrito como um filósofo existencialista, embora ele mesmo tenha negado esse rótulo.

Foi na década de 1940 que Camus – cuja nacionalidade é franco-argelina – começou a despontar ao posto de intelectual literário mundialmente famoso. Começou como romancista, dramaturgo e ensaísta filosófico e um defensor da liberdade. Nessa década de 1940 começou a guerra na Europa, ocupação da França, censura oficial e uma repressão aos jornais de esquerda. Após se casar com sua segunda esposa, Francine Faure, viajou de Lyon (onde morava) para Argélia, seu país natal. Foi nesse período passado em Oran que surgiu “O Estrangeiro”, que foi finalizado em 1942. Esse romance catapultou a carreira de Camus. Em 1942, Camus retornou à França, quando começou a trabalhar no jornal clandestino Combat, jornal vinculado à Resistência Francesa. Nesse período teve que lutar contra a tuberculose. Foi aí que ele publicou “O Mito de Sísifo”, sua anatomia filosófica do suicídio e do absurdo.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Camus continuou como editor de Combat (tornou-se um jornal legal depois da guerra), assumiu um papel de liderança e destaque, supervisionou duas peças, “Equívoco” e “Calígula”, que em breve estarão aqui resenhadas. Na companhia de Sartre e Simone de Beauvoir, entre outros, sua fama de um grande pensador ganha notoriedade quando publica “A Peste” (que ainda não li, mas estará aqui em breve), que é um livro que fala sobre a ocupação nazista. Em 1951 publicou “O Homem Revoltado”, que é uma crítica filosófica à violência revolucionária. Essa obra gerou uma tensão, pois é uma crítica velada ao marxismo-leninismo. Essa obra gerou um desentendimento com Sartre e, juntamente com a oposição à Frente nacional da Argélia, acabou sendo tachado de reacionário. No entanto, Camus se notabilizou por uma defesa explícita à liberdade individual e um crítico ácido à tirania do terror tanto de direita como de esquerda.

Em 1953, Camus apresentou, no festival de Angers, duas adaptações: “A Devoção da Cruz”, de Calderón de Ia Barca (1600-1681), e “Os Espíritos”, de Pierre de Larivey (1540-1619). O público estimulou Camus a se dedicar mais ao teatro. Camus adapta vários outros autores. As encenações, que geravam reflexões no público, tiveram uma boa receptividade. 

Em outubro de 1956 encenou, no teatro dos Mathurins, uma adaptação de “Réquiem para uma Freira”, de William Faulkner (1897-1962), sucesso que se manteve em cartaz durante dois anos. Na ausência de um ator, certa noite o próprio Camus subiu ao palco para viver o papel de governador. Em 1957, novamente no festival de Angers, ence­nou sua adaptação de “O Cavaleiro de Olmedo”, de Lope de Vega (1562-1635). Porém, sua maior realização nesse campo foi “Os Possessos”, adaptado de Dostoiévski (1821-1881), que estreou no Teatro Antoine, em Paris, em fevereiro de 1959. Obra de que falaremos.

“Os Possessos”, de Camus, é uma versão teatral de “Os Demônios” (romance já resenhado aqui no site). Em um primeiro momento (como em “Os Demônios”, de Dostoievski), o deus russo é mencionado a partir da perspectiva de personagens moralmente falhos. Stepan Tromfímovitch é apresentado ao leitor como um homem que vive em viveiro de livres pensadores, onde o jogo, a champanhe e os pensamentos liberais, o espírito russo, sobre o Deus em geral e o Deus russo em particular, sempre acabam sendo tema de debates estéreis.

(A citação pode parecer estranha, pois a edição do meu livro é de Portugal.)

Stepan: - Fui passear para o jardim. Levei comigo Tocqueville...

Varvara: – Esteve a ler Paulo de Kock. Por estas e outras há quinze anos anda a anunciar o seu livro.

 Stepan: É verdade. Os materiais estão recolhidos, mas é preciso juntá-los. E que importância tudo isso tem? Estou esquecido. Ninguém precisa de mim.

Varvara: Esqueciam-se menos e si jogasse menos vezes cartas.

 Stepan: Sim, jogo. Não é digno. Mas quem é o responsável? Quem quebrou a minha carreira? Ah! E a Rússia que morra! Trunfo.

 Varvara: Nada impede que trabalhe e demonstre, pela sua obra, que fazem mais mal em o desprezar.

 Stepan: - Esquece, querida amiga, que já publiquei muito...

Varvara: - Sério? E quem se lembra disso?

 Stepan:- Quem? Bem... Este nosso amigo recorda-se certamente...

Grigoreiev: - Sem dúvida. Primeiramente as vossas conferências acerca dos Árabes na generalidade; depois do vosso estudo sobre a extraordinária nobreza moral de certos cavaleiros de uma dada época; e principalmente a vossa tese sobre a importância que poderia ter obtido o pequeno burgo de Hanau entre 1413 e 1428, e as causas obscuras que, exatamente o impediram de conquistar essa importância.

 Stepan: - Tem uma memória de aço, querido amigo agradeço-lhe...

Varvara: - O caso não é esse. O caso é que há quinze anos anda anunciar um livro para o qual ainda não escreveu uma palavra. (pg14, pág. 15, pág. 16)

Stepan Tromfimovich é retratado como um liberal inútil, cujas divagações banais induzidas pelo álcool sobre a suposta verdadeira natureza da Rússia, o espírito russo e o Deus russo, acabam causando mais danos do que qualquer outra coisa, considerando que ele é parcialmente culpado pelas ideias revolucionárias que alimentam a destruição que ocorre no romance. 

Segundo Camus, Dostoievski é obcecado pelo raciocínio absurdo. E o que vem a ser o absurdismo, segundo Camus? Ao contrário da visão transmitida pela cultura popular, o Absurdo (na visão de Camus) não quer dizer que a vida seja repleta de paradoxos, incongruências e confusão intelectual. O Absurdo, na visão de Camus, expressa uma desarmonia, uma incompatibilidade trágica em nossa existência. O Absurdo é o produto de uma colisão entre o nosso desejo humano de ordem e o “silêncio o universo”. Em outras palavras, podemos dizer que “o absurdo não está no homem nem no mundo”, explica Camus, mas na presença deles juntos. O absurdo é que une o homem ao universo.

O Absurdo se apresenta como uma oposição existencial entre a demanda humana por clareza e transcendência, por um lado, e o cosmo por outro. Habitamos (na visão de Camus) em um mundo indiferente aos nossos sofrimentos e surdo aos nossos protestos.

Para Dostoievski, ou existe um Deus, ou seja, uma vida após a morte, e a vida tem um sentido, ou a vida não tem nenhum sentido, tudo que fazemos é inútil, e a vida é pouco mais que uma piada cruel. Suas preocupações absurdas são típicas de um escritor moderno, pois está preocupado e interessado com a metafísica e o sentido da vida. Problemas que afetam a vida das pessoas, em vez de apenas lidar com eles como conceitos abstratos.

“Kirilov (num brusco arrebatamento): É uma covardia, uma covardia, mais nada! A vida não é boa. E o outro mundo não existe! Deus não passa de um fantasma criado pelo medo da morte e do sofrimento. Para se ser livre, é preciso vencer a dor e o medo, é preciso matar-se. Então não haverá mais Deus, e o homem será, enfim, livre. A história passaria a dividir-se em duas partes: do gorila e da destruição de Deus e da determinação de Deus...

Grigoeriev: Ao gorila?

- Kirilov: Á endeusação do homem. (subitamente calmo) Aquele que ousa matar-se, esse, é Deus. Ninguém ainda pensou nisto. Eu sim.

Grigoeriev: Tem havido milhões de suicidas.

Kirilov: - Nunca por este motivo. Sempre por medo. Nunca para matar o medo. Aquele que se matar só para matar o medo, nesse mesmo instante se tornará Deus.

Grigoeriev: - Receio que não tenha tempo para dar por isso.

Kirilov, (levantando-se, lentamente, e com ar de desprezo)

Lastimo o seu ar de troça.

Grigoeriev: Desculpe eu não estava a rir. Mas tudo isto é tão estranho.

Kirilov: Estranho porquê? O que é estranho, é que se possa viver em pensar nestas coisas. Eu não posso pensar mais em nada. Toda a minha vida só tenho pensado nisto. (Faz-lhe sinal para ele se aproximar Grigoriev aproxima-se). Toda a minha vida tem sido atormentada por Deus”. (pág. 59; pág. 60; pág. 61)]

“... Grigoeriev: Não sei. Se bem compreendi, quer que nos suicidemos todos para provar a Deus que ele não existe.” (pág. 62)

Kirilov é um personagem de “Os Possessos” que comete o que ele chama de "suicídio lógico". Para que a vida valha a pena ser vivida, Deus deve existir, e ainda assim ele está convencido de que Deus não pode existir. Seu suicídio é essencialmente uma revolta contra a ideia de que Deus não existe. Ele é um personagem absurdo cuja ação é motivada pela revolta e é feita no espírito da liberdade. Kirilov comete suicídio, mas não é um ato de desespero, mas um ato criativo no qual Kirilov espera, em certo sentido, “tornar-se Deus”.

“Kirilov: - O sofrimento. Aqueles que se matam, por loucura ou desespero, não pensam no sofrimento. Mas os que se matam por raciocínio, pensam demasiadamente nele.

Grigoreiev: O quê? Há pessoas que se matam por raciocínio?

Kirilov: - Muitas. Sem o sofrimento e os preconceitos, ainda haveria um número maior. Até mesmo, talvez, toda a gente.

Grigoreiev: O quê?

Kirilov: Mas, a ideia de que vão sofrer, impede-os de se matarem. Mesmo quando sabem que não há sofrimento, a ideia mantém-se. Imagine uma rocha grande como um edifício, prestes a cair sobre si. Sabia que não teria tempo de sentir nada, de ter qualquer sofrimento. Pois mesmo assim, teria medo e recuaria. Não é interessante?

Grigoreiev: Deve haver uma outra razão.

Kirilov: Sim. O outro mundo.

Grigoreiev: Quer referir-se à punição.

Kirilov: Não, o outro mundo. Crê-se que há uma razão para viver.

Grigoreiev: E não há?

Kirilov: Não, não há. É por isso que somos livres. É indiferente vivermos ou morrermos.” (pg57; pg58)

A diferença que podemos ver entre Dostoievski e Camus é que o primeiro conclui que não podemos viver sem fé, enquanto Camus acredita que podemos. Na Rússia de Dostoievski, a vida sem Deus pode até parecer necessária. Em “Os Possessos”, de Camus, o suicídio é uma alternativa à fé em Deus.

“Kirilov: É isso mesmo. Tu me compreendeste-me e toda a gente compreenderá, se até um crápula como tu o compreendeu. Mas é necessário quer alguém comece, e se mate, para provar aos outros a terrível liberdade do homem. Sou desgraçado porque sou o primeiro e tenho terrivelmente medo. Serei o Tzar só por mais algum tempo. Mas mostrarei o caminho. E os homens estarão todos felizes, serão todos Tzars e para sempre. (senta-se na mesa). Ah! Dá-me a pena. Dita, que eu assinarei tudo. E também a declaração de que matei Chatov. Dita. Não tenho medo de ninguém, tudo me é indiferente. Tudo que está oculto se saberá, e, tu serás esmagado. Eu creio. Eu creio. Dita.

Pierre (levanta-se num repente e põe em frente de Kirilov, papel e pena)

- Eu, Alexis Kirilov, declaro...

Kirilov: - Sim. A quem? A quem? Quero saber a quem faço esta declaração.

Pierre: - A ninguém, a todos. Para quê precisar? Ao mundo inteiro.

Kirilov: - Ao mundo inteiro! Bravo! E, sem arrependimento. Não quero arrependimento nem quero dirigir-me às autoridades. Vá, dita. O universo é mau, eu assinarei.” (pág. 270)

Ao lado de Kierkegaard e Nietzsche, Dostoievski é frequentemente citado como uma das grandes inspirações do século XIX para o movimento existencialista. Como Dostoievski, Camus é um romancista com preocupações filosóficas. A grande preocupação de Camus é justamente determinar se e como uma pessoa pode viver com a plena consciência do absurdo.

“Os Possessos”, de Camus, respeita fielmente a trama tecida por Dostoievski. Anuncia o niilismo e também porque retrata as almas dilaceradas incapazes de amar e sofrer por não o poder fazer. O que faz dessa adaptação para o teatro uma obra-prima.

“Os Possessos”, de Albert Camus, é um livraço que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 01 abril 2022 (Atualizado: 01 de abril de 2022) | Tags: Teatro


< As Três Irmãs Tartufo >
Os Possessos
autor: Albert Camus
editora: “Editora Livros do Brasil” Lisboa
tradutor: Armando Ferreira
gênero: Teatro;

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