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Foe

Existem alguns temas contemporâneos que gosto de pesquisar na internet. Considero-me um sortudo por estar vivenciando (por mais críticas que se faça ao www – World Wide Web) essa rede mundial a que todos nós temos acesso. Digo isso, pois me facilita pesquisar sobre variados temas que me são importantes. Entre essas curiosidades, cito um exemplo: a guerra na Síria.

 

Foi pesquisando que entrei em um jornal chamado “New Internationalist Magazine” de 2015 e ali acabei encontrando um artigo chamado “Cantando o Silêncio” sobre a revolução síria. Ao ler o artigo, soube que em junho de 2011, ou seja, um pouco antes da guerra civil, um cantor chamado Ibrahim Qualoush compôs uma canção em uma manifestação antirregime em Hama. A canção, segundo o artigo, foi composta em torno de uma letra bem simples cujo refrão a multidão cantava: “Vamos, Bashar (Assad), deixe o poder”. Poucos dias depois, o corpo de Ibrahim foi puxado para fora do rio Orontes. Suas cordas vocais haviam sido cortadas. Ao matar aquela voz, o regime de Bashar Assad estava tentando restabelecer o silêncio que foi imposto ao país por mais de quarenta anos, seguindo os preceitos de seu pai, Hafez Assad.

 

Juntamente com Ibrahim (na música), a pintura, a sátira, grafites, cartazes e desenhos, além dos blogueiros, foram silenciados. E é o silêncio o grande tema de Foe, do escritor Coetzee. E o que isso tem a ver com o livro Foe? Faço essa breve introdução para falar sobre o livro Foe, do Prêmio Nobel John Maxwell Coetzee. O livro é contado em quatro partes. Foe conta a história de Susan Barton, uma mulher que foi jogada ao mar de um navio após um motim a bordo que resultou na morte do capitão, e se encontra totalmente perdida dentro de um pequeno barco em mar aberto. Cansada de tanto remar, começa a nadar e as correntes marítimas a levam a uma ilha deserta, onde um homem negro (Sexta-feira) aparece. Ela tenta dialogar pedindo água, seus pés estavam machucados, até que o homem negro a carrega nas costas e leva-a até um homem chamado Cruzo.

 

Esta obra de Coetzee é uma obra de ficção psicológica com o foco temático sobre a linguagem, na qual ele faz uma apropriação da história de Robinson Crusoé escrita por Daniel Defoe. Grande parte da história gira em torno de Cruso e de seu assistente Sexta-feira, que teve a língua arrancada, o que nos dá inúmeras interpretações e hipóteses que não podem ser verificadas, portanto é bom que o leitor não se deixe envolver por uma única interpretação. Cruso tem uma estreita relação com a ilha deserta. Ele perdeu o interesse em escapar da ilha, ou mesmo em recordar momentos de sua infância.

 

“Nada do que esqueci vale a pena lembrar.”(pg18)

 

Depois de quase um ano da chegada de Susan Barton à ilha, eles foram resgatados por um navio inglês graças ao capitão Smith, mas na viagem de volta à Inglaterra, Cruso morre pensando sobre sua ilha. O restante do livro nos fala sobre a relação de Susan Barton e Sexta-feira, e seus esforços para persuadir o escritor Foe, Daniel (De)Foe (autor de Robinson Crusoé), em não transformar sua história em um livro popular de aventura, mas apenas relatar os fatos por ela vividos. Num primeiro momento, Foe não tem muito interesse em Cruso e Sexta-Feira. Ele considera a história da ilha entediante. Ele está mais interessado nos dois anos passados por Susan na Bahia, um tempo que não tem nenhum significado para ela. Para Foe, a verdade não importa muito, ele persegue a ficção. Para ele, é tudo uma questão de palavras e o número de palavras impressas, não existe compromisso com a verdade, mas com uma boa história. Mas Foe encontra-se em uma situação financeira difícil, os oficiais de justiça tomaram a sua casa.

 

Susan tenta escrever sua própria história, mas ela não sente segurança para escrever sobre a perda da língua de Sexta-feira, o leitor pode adivinhar a série de eventos que causaram essa perda. A contradição está no cerne da história. Mas uma coisa é certa: a verdadeira história permanece enterrada dentro de Sexta-feira, que é mudo. Para retransmitir a história, é preciso que Sexta-feira consiga recuperar a sua voz.

 

“Na ilha, aceitei que nunca saberia como Sexta-feira perdeu a língua, assim como aceitei que nunca saberia como os macacos atravessaram o mar. Mas o que podemos aceitar na vida não podemos aceitar na história. Contar minha história e silenciar sobre a língua de Sexta-feira não é melhor que pôr a venda um livro com páginas deixadas em branco sem explicação. No entanto, a única língua que pode contar o segredo de Sexta-feira é a que ele perdeu!” (pg 62)

 

Para o linguista Ferdinand Saussure, o signo é o resultado de significado mais significante. O significado é o conceito. O significante é a forma gráfica mais som, ou seja, toda palavra que possui um sentido é considerada um signo linguístico. Observamos que a palavra “cachorro” é um signo linguístico, portanto é algo arbitrário, ou seja, situa-se entre um conceito e uma imagem sonora. No caso de Sexta-feira, ele não tem nenhum domínio das palavras, pois sua língua foi decepada. Não há palavras dentro dele.

 

“Quanto a Sexta-feira, pergunto, no entanto: como ele pode aprendera escrever se não existe palavras dentro dele, em seu coração, para escrita refletir, mas ao contrário apenas um torvelinho de sentimentos e impulsos? Quanto à escrita de Deus, minha opinião é: se ele escreve, ele emprega uma escrita secreta, que nos é dado ler, a nós que somos parte dessa escrita.”

 

“Não podemos ler, concordo, isso era parte do que eu queria dizer, uma vez que somos aquilo que ele (Deus) escreve. Nós, ou alguns de nós: é possível que alguns de nós não sejam escritos, mas meramente sejam; ou então (penso principalmente em Sexta-feira) são escritos por um outro e mais sombrio autor. No entanto a escrita de Deus continua sendo um exemplo de escrita sem fala. Fala não é senão um meio através do qual a palavra pode ser pronunciada, não é a palavra em si. Sexta-feira não tem fala, mas tem dedos podem ser seu meio.” (pg 128, pg 129)

 

A ilha deserta de Cruso era o seu próprio reino. Ele acredita que a história da ilha começa com a sua chegada. “Aqui não é a Inglaterra, não precisamos de muitas palavras.” (pg 22) “Leis são feitas com um único propósito, ele me disse: para nos impor controle quando nossos desejos se tornam imoderados. Contanto que os nossos desejos sejam moderados, não temos necessidades de leis.” (pg 35) Ao contrário de Cruso, Susan reconhece a necessidade da moderação. No entanto, diz: “Sinto um desejo de ser salva que tenho de chamar de imoderado” (pg 35). O fato de Cruso não tiranizar Sexta-feira poderia ser atribuída a seus valores de igualdade, mas também devemos considerar que Sexta-feira se submete totalmente ao reinado de Cruso, a resposta do senhor da ilha é sucinta: “ele me obedece a tudo”. (pg 36) Como Sexta-feira perdeu a sua língua na versão de Cruso? “Talvez os negreiros, que são mouros, tenham a língua na conta de uma iguaria, disse ele. Ou talvez tenham se cansado de ouvir Sexta-feira choramingar de tristeza dia e noite. Talvez quisessem impedir que ele algum dia contasse a sua história: quem ele é, onde fica sua casa, em que circunstância foi pego. Talvez cortassem a língua de todo canibal que pegavam como castigo. Como poderemos saber a verdade?” (pg 23) Podemos entender que a perda da língua reforçou a servidão de Sexta-feira e lhe ensinou a obediência eterna. Essa perda da língua representa no livro a metáfora e mistérios que complicam em vez de resolver a perda do discurso de Sexta-feira. A única coisa que sabemos é que da boca de Sexta-feira escapavam os sons da ilha.

 

O livro Foe, do Prêmio Nobel John Maxwell Coetzee, é um livro cheio de metáforas, e o silêncio é uma delas, assim como a memória. Um livro que recomendo que seja lido em um dia. E recomendo parar em seguida para refletir sobre todos os pontos abordados pelo autor. Posso dizer sem medo de errar que se trata de uma obra-prima.

 

Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 (Atualizado: 08 de agosto de 2016) | Tags: Romance


< As Cabeças Trocadas O Diário de uma Camareira >
Foe
autor: John Maxwell Coetzee
editora: Companhia das Letras
tradutor: Jose Rubens Siqueira
gênero: Romance;

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