Livros > Resenhas

Casa dos espíritos

Estava para ler “A Casa dos Espíritos” de Isabel Allende há muito tempo. Tomei vergonha na cara quando minha esposa me convidou para assistir ao filme baseado no livro, com ninguém mais ninguém menos que Meryl Streep, Jeremy Irons, Glenn Close e Antonio Banderas Winona Rider no elenco. Como leitor, não parecia justo eu ver o filme sem ter lido o livro antes. E foi lendo que eu simplesmente mergulhei de cabeça nessa trama maravilhosa, construída por essa escritora notável. Quem já leu essa obra (e eu sei que são muitos) pode confirmar o que estou dizendo sobre o nosso livro de hoje.

Vamos à história?

A trama do romance “A Casa dos Espíritos” atravessa quase um século da vida de duas famílias ricas chilenas. Ao redor dessas famílias ricas se desenrolam tramas paralelas com pessoas de todas as classes. Allende faz um retrato de algumas camadas sociais.

São duas as famílias que formam os pilares da história. O primeiro pilar é a abastada e importante família Del Valle de Severo e Nívea (que significa neve). Somos apresentados à família Del Valle quando Severo e Nívea se sentam em uma igreja sufocante com seus onze filhos vivos e ouvem o sermão cheio de fogo e enxofre de um padre. Quando a pequena Clara amaldiçoa durante um momento silencioso, ela ganha uma reputação de possessão demoníaca. Isso preocupa os pais dela, por mais razões do que você imagina. 

Severo, o pai, aspirante a político, e a mãe Nívea, lutavam pelo direito ao voto das mulheres. A família Del Valle tem lugar de destaque na sociedade.  Eles têm duas filhas: Rosa, a imaculada, com os cabelos verdes, e Clara, que era uma clarividente que se comunicava com o outro mundo.

“Barrabás chegou à família por via marítima, anotou a menina Clara, com sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e mais tarde, quando ficou muda, escrevia também trivialidades, sem suspeitar que, cinquenta anos depois, os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao próprio espanto.” (pg 1)

No outro pilar, a família Trueba, a viúva Ester e os filhos Esteban e Férula. Desses dois núcleos, se unem Esteban e Clara para formar uma nova família que habitará a grande casa da esquina, no chamado Bairro Alto, onde viviam os afortunados da sociedade, e a fazenda Três Marias, no Pueblo San Lucas, onde a família tira seu sustento.

Esteban é o lado obscuro da trama. Um personagem altamente conturbado emocionalmente, forte, mas egoísta, de difícil temperamento e caráter duvidoso. Alimenta a raiva, o ressentimento. Simboliza a vida material, a falsa moral e a tirania. Trabalhador, reconstrói do zero a fazenda Três Marias, que pertencia à sua família. Mas exerce seu poder opressor de várias formas: em relação aos empregados, através da exploração e do poder econômico; em relação às mulheres, através da força e da violação; e, mais na frente, em relação à família, através da submissão e do paternalismo. Acreditava que as pessoas não tinham direitos iguais.

O livro “A Casa dos Espíritos” abre com a família Del Valle reunida na igreja na Quinta-feira Santa. O padre Restrepo acusava a jovem Clara de ser possuída pelo diabo. O corpo e os pertences do tio Marcos são deixados na casa dos Del Valle, e Clara leva Barrabás, o cachorro do tio Marcos, como seu. Esteban Trueba ganha a mão de Rosa, mas antes que eles possam se casar, ela é envenenada até a morte por acidente no lugar de Severo. Depois de testemunhar a autópsia de Rosa, Clara resolve não falar por nove anos.

A história muda para a vida familiar de Esteban. Sua irmã, Férula, está sacrificando sua juventude para cuidar de sua mãe doente, Dona Ester. Depois de passar muitos meses minerando, Esteban decide elevar a antiga fazenda da família, Três Marias, da ruína. Ele consegue restaurar a propriedade à sua antiga glória, mas é injusto com seus empregados camponeses e estupra duas jovens, incluindo Pancha García, que engravida do primeiro de muitos filhos ilegítimos que Esteban se recusa a reconhecer. Esteban faz sua primeira tentativa com a prostituta Transito Soto em um bordel chamado Lanterna Vermelha. Ele empresta cinquenta pesos para ela viajar para a capital e melhorar sua vida.

Se Esteban é o lado obscuro da trama, Clara, pelo simbolismo de seu nome, significa, luz. Desde pequena era diferente e, por isso, não a compreendiam. Sabia de antemão quando a terra ia tremer, adivinhava o futuro, movia os objetos sem tocá-los. Sua família acostumou-se e a cercou de amor, mas, mesmo assim, Clara, em alguns momentos da vida, principalmente quando as consequências de seus dons eram dolorosos, optou pelo silêncio. Ela passa a maior parte de sua infância em silêncio, acompanhando a mãe em suas missões sufragistas por toda a cidade. No seu décimo nono aniversário, Clara finalmente fala. Ela anuncia que em breve se casará com Esteban Trueba. A mãe de Esteban está prestes a morrer, e ele retorna à cidade, onde ele visita a casa dos Del Valle. Esteban e Clara ficam noivos e se casam.

Esteban havia construído uma casa que ficou conhecida como a casa grande na esquina. A irmã de Esteban, Férula, vem morar com eles. Férula é o tormento de Esteban. Odiada pelo irmão, encontra o afeto no espírito piedoso de Clara, o que o deixa ainda mais neurótico. Uma mulher cheia de culpas e que, por isso, via nos dogmas da Igreja de uma sociedade muito católica sua salvação.

“Esteban podia recordar o momento exato em que se deu conta de que a irmã era uma sombra fatídica. Foi quando ganhou o seu primeiro salário. Decidiu que guardaria para si cinquenta centavos para realizar um sonho que acarinhava desde a infância: tomar café vienense. Vira, através das janelas do Hotel Francês, os empregados que passavam com bandejas à altura da cabeça levando o tesouro: copos grandes de cristal coroados com torres de creme batido e decorados com uma linda ginja cristalizada. No dia de seu primeiro salário passou diante do estabelecimento muitas vezes antes de se atrever a entrar. Finalmente, com timidez, transpôs a porta com a boina na mão, e avançou até a luxuosa sala, entre lustres e móveis de estilo, com a sensação de que toda a gente olhava para ele, que mil olhos criticavam o seu terno demasiado apertado e os seus sapatos velhos. Sentou-se na beira da cadeira. Com as orelhas quentes, e fez o pedido ao empregado com um fio de voz. Esperou impaciente, espiando nos espelhos o ir e vir das pessoas, saboreando de antemão o prazer tantas vezes imaginados. Chegou finalmente o seu café vienense, muito mais impressionante do que imaginara, soberbo e delicioso e acompanhado por três frasquinhos de mel. Contemplou-o longamente fascinado, por fim atreveu-se a pegar na colher de cabo grande e, com um suspiro de felicidade, mergulhou-a no creme. Sentia água na boca. Estava disposto a fazer durar aquele instante o mais possível, estica-lo até o infinito. Começou a mexer, vendo como se misturava o líquido escuro do copo com a espuma do creme. Mexeu, mexeu, mexeu. E, de repente a ponta da colher bateu no cristal, abrindo um orifício por onde saltou o café em jorro. Caiu-lhe na roupa. Esteban, horrorizado, viu todo o conteúdo do copo espalhar-se sobre o único terno ante o olhar divertido dos ocupantes das outras mesas. Parou pálido de frustração e saiu do Hotel Francês com cinquenta centavos a menos, deixando à passagem um rego de café vienense nas macias almofadas. Chegou a casa humilhado e furioso, decomposto. Quando Férula soube o que tinha sucedido, comentou com azedume: “Isso aconteceu por gastares o dinheiro dos remédios da mamã com os teus caprichos. Deus castigou-te”. Nesse momento Esteban viu perfeitamente os mecanismos que usava sua irmã para dominar, a forma como conseguia fazê-lo sentir-se culpado, e compreendeu que devia pôr-se a salvo. À medida que se foi afastando de sua tutela, Férula foi antipatizando com ele. A liberdade de que ele desfrutava doía nela como uma acusação, como uma injustiça.” (pg 46 e pg 47)

Cerca de um ano após o casamento, nasce o primeiro filho de Clara e Esteban, Blanca. Quando a família viaja para a fazenda Três Marias no verão, alguns anos depois, Blanca conhece Pedro Terceiro e eles se apaixonam. Pedro Terceiro é filho de Pedro Segundo, o capataz camponês de Três Marias. No final do verão, Clara engravida novamente de gêmeos, que ela anuncia que serão chamados Jaime e Nicolás. 

Alguns dias antes do nascimento dos gêmeos, os pais de Clara são mortos em um acidente de carro. As equipes de resgate não conseguem encontrar a cabeça de Nivea. Ninguém quer dizer a Clara que Nivea está enterrada sem cabeça, porque eles não querem incomodá-la pouco antes do parto. Clara, no entanto, percebe que a cabeça de sua mãe não foi encontrada, havia sido decapitada, e faz Férula ir com ela para encontrá-la. E Clara acha a cabeça de sua mãe e a guarda numa caixa de chapéu. Clara entra em trabalho de parto. Nascem os gêmeos, Jaime e Nicolás. Foi a partir desse evento que ela resolve viver no mundo espiritual. Por causa de seu envolvimento no mundo espiritual, Clara não desempenha um grande papel na criação de seus filhos Nicolás e Jaime.

 

Ao longo dos anos, Férula e Clara desenvolveram uma profunda amizade. Os sentimentos de Férula por Clara se estreitam com o amor apaixonado, e ela e Esteban desenvolvem uma rivalidade pelos afetos de Clara. Uma manhã, Esteban chega em casa inesperadamente e encontra Férula na cama de Clara. Esteban chuta Férula para fora de casa. Quando ela sai, Férula amaldiçoa Esteban à eterna solidão.

Certa vez, o fantasma de Férula aparece para a família no jantar numa noite, então eles ficam sabendo que ela está morta. Clara e Esteban encontram seu corpo no apartamento onde ela morava.

Na primeira parte do livro, Isabel Allende organiza o cenário e dá vida aos personagens, delineando a cultura e mostrando o conservadorismo da sociedade chilena, a relação patriarcal e discriminatória. Na segunda parte, a autora nos mostra as consequências de todo esse caldo social criado por ela.

A história cresce. Blanca é considerada "a primeira pessoa normal em gerações" na família Trueba porque ela não está inclinada a se comunicar com os espíritos. Desde a primeira visita da família a Três Marias, ela desenvolve um vínculo forte com Pedro Terceiro García. Esteban desaprova sinceramente essa amizade, especialmente quando Pedro Terceiro começa a circular propaganda revolucionária entre os camponeses. 

Em Três Marias, Blanca e Pedro Terceiro fazem amor pela primeira vez. Eles devem se encontrar ainda mais secretamente quando Esteban o expulsa da propriedade. Quando um grande terremoto ocorre, Esteban é esmagado sob os escombros da casa principal, mas o velho Pedro García consegue curar todos os seus ossos quebrados. Esteban se recupera e faz amizade com o conde Jean de Satigny. 

Depois que seu negócio experimental de chinchilas falha, Jean Satigny fica apaixonado por Blanca, que não está interessada nele porque ela ama Pedro Terceiro. Jean segue Blanca até a margem do rio numa noite, onde ele testemunha o caso dela com Pedro Terceiro. Quando ele conta a Esteban, o patrão açoita Blanca e bate em Clara e ela perde vários dentes. Mãe e filha deixam Três Marias e voltam para "a casa grande na esquina". E nunca mais ela falará com ele novamente. Por vários anos, mesmo vivendo na mesma casa, quase nunca se veem. Vivem um com o outro de uma forma silenciosa. Ao saber da notícia envolvendo sua filha com seu empregado, Esteban faz Blanca deixar a fazenda Três Marias e tenta matar Pedro Terceiro.

De volta à casa, fica evidente que Blanca está grávida. Para encobrir o escândalo, Esteban Trueba a força a se casar com Jean de Satigny. Blanca e Jean se mudam para uma mansão distante, onde ela vive um tédio brutal, mas feliz por ele não querer fazer sexo com ela. Jean se ocupa gastando quantias luxuosas, traficando artefatos indianos pela casa e passando um tempo trancado em seu estúdio de fotografia.

Certa vez, ela descobre práticas sexuais incomuns de seu “marido” e o deixa. Ela dá à luz a sua filha Alba. Ela nasce com sorte. É criada por toda a família, inspirando grande amor em todos. Ela é o único membro da família que desenvolve um relacionamento afetuoso com seu avô Esteban. Alba é criada sem pai, e é dito que o pai dela era um grande conde que morreu no deserto. Certa vez ela conheceu Pedro Terceiro García e passa um tempo com ele regularmente, mas não lhe dizem que ele é seu verdadeiro pai.

De volta à "casa grande na esquina", Clara decide que cumpriu o propósito de sua vida e resolve morrer. Ela morre no sétimo aniversário de Alba, segurando a mão da menina sem medo. Esteban sente muita falta de Clara. Ele comissiona um mausoléu onde será enterrado ao lado de Clara e Rosa, e pede a Jaime para ajudá-lo a exumar os restos mortais deste último para esse fim. Assim começa um período de declínio na história da família.

Jaime e Nicolás, filhos do casal, voltam do internato para casa. Nicolás é um dos filhos gêmeos de Clara, que passa a maior parte do tempo de sua vida tentando se encontrar em empreendimentos que vão desde ensinar flamenco até a frequentar uma instituição para a união com o Nada. Podemos dizer que ele é um hippie. Ele passa a vida adulta como vegetariano nudista e espiritualista extremo e consegue muitos seguidores. O momento mais marcante da vida de Nicolás é quando ele está nu na rua em frente aos portões do Congresso em protesto contra o seu próprio pai. Esteban Trueba envia Nicolás para fora do país, mas fornece-lhe bastante dinheiro. Acaba sendo um palestrante sobre os diversos assuntos e filosofias que estudou ao longo de sua vida na América, onde desenvolve os seus ensinamentos.

Jaime se torna médico dedicado aos menos favorecidos, a quem ele serve em sua clínica. Jaime está apaixonado por Amanda, mas não deixa que seus sentimentos o superem. Quando ele não está trabalhando, ele pode ser encontrado lendo em seu "túnel de livros". Jaime faz um aborto em Amanda e depois a salva de um vício em narcóticos. Ele tem um relacionamento especial com sua sobrinha, Alba, a quem ele garante ter uma compreensão sem vergonha do corpo humano e acesso a todos os livros que ela pode manusear.

Na universidade, Alba se apaixona por Miguel, que se tornou um líder estudantil de esquerda. Ela participa de um acampamento revolucionário com ele, mas é forçada a sair por um fluxo menstrual incomumente pesado e doloroso. Logo depois, Alba convoca Jaime para ajudar seu velho amor, Amanda, que se tornou vítima de um terrível vício em narcóticos.

Para surpresa de todos, os socialistas vencem as eleições. Pedro Terceiro se junta ao governo. Os camponeses tomam conta de Três Marias. Esteban tenta detê-los e é feito refém. A pedido de Blanca, Pedro Terceiro intervém e salva Esteban. Ele e os conservadores fazem todo o possível para desacreditar os socialistas, incluindo a preparação para um golpe militar. Alguns meses depois, ocorre um golpe militar. Jaime, que é amigo do presidente socialista, é morto. Miguel se junta aos guerrilheiros, e Pedro Terceiro se esconde na casa grande na esquina. Esteban inicialmente se agrada com o golpe, mas logo percebe que resulta não no retorno dos conservadores ao poder, mas no estabelecimento de uma ditadura militar. Ele não consegue fazer nada além de ajudar Blanca e Pedro Terceiro a fugir para o Canadá.

Fico por aqui. Todos sabem o que aconteceu no Chile em 1973, onde toda essa história vai parar, apenas acrescentando que os protagonistas do romance são todas as mulheres que trabalham de maneiras diferentes e sutis para reivindicar seus direitos. “A Casa dos Espíritos” pode ser vista como uma resposta centrada na mulher ao texto paradigmático do realismo mágico de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez. 

Clara, Blanca e Alba continuam sendo o foco da história, enquanto Esteban, Pedro Terceiro e Miguel entram na história porque são os homens com quem essas mulheres amam ou se casam. As experiências particularmente centrais na vida das mulheres dominam os menores e os principais eventos da história, como as descrições detalhadas de cada parto e aborto, além da apresentação de violência física e sexual contra as mulheres.

Se violência e atividade são traços masculinos, enquanto gentileza e passividade são femininos, “A Casa dos Espíritos” mostra que isso não significa que os homens realizam coisas e mudam as coisas, enquanto as mulheres não. Pelo contrário, as mulheres na “Casa dos Espíritos” efetuam mudanças mais duradouras e drásticas do que qualquer um dos homens. Enquanto os homens lideram revoluções que derrubam governos, essas revoluções são rapidamente derrubadas. 

Não poderia começar melhor 2020 do que lendo “A Casa dos Espíritos”. Agora me sinto pronto para ver o filme. Um livro que merece um lugar de honra na sua estante. 


Data: 14 janeiro 2020 (Atualizado: 14 de janeiro de 2020) | Tags: Romance


< Amor Carta aos escroques da Islamofobia que fazem o jogo dos racistas. Manifesto do diretor do Charlie Hebdo >
Casa dos espíritos
autor: Isabel Allende
editora: Difel: Difusão Editorial S.A
tradutor: Carlos Martins Pereira
gênero: Romance;

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

O arroz de Palma

Resenhas

A Balada de Adam Henry

Resenhas

A bela de Odessa ( Saga de uma família judia na Revolução Russa)