Livros > Resenhas

A Profissão da Sra. Warren

Bernard Shaw era o terceiro filho de uma família, que segundo seus biógrafos, foi descrita pelo autor como “ruins, mas gentis”. Seu pai, George Carr Shaw, foi funcionário público e mais tarde se tornou comerciante, mas, infelizmente, malsucedido. Seu pai gostava de beber, e quando bebia tinha uma certa culpa, mas não a ponto de desistir do copo. No entanto, foi do seu pai que herdou soberbo tom cômico.

Lucinda Gurley Shaw, a mãe, era uma talentosa cantora e professora de música; ela levou seu filho a desenvolver uma paixão pela música operística. Ainda novo, Shaw havia memorizado muitas obras de Mozart. Mais tarde, aprendeu a tocar piano sozinho.

Aos dez anos de idade, Shaw tornou-se aluno da Wesleyan Connexional School em Dublin. Mais tarde, ele frequentou outras escolas por curtos períodos de tempo. Ele odiava todas as escolas. Ele chegou a declarar que não havia aprendido absolutamente nada nas escolas. No entanto, havia em sua personalidade uma mente inquisitiva e uma capacidade ilimitada de estudo independente.

 Aos dezesseis anos, foi trabalhar como balconista em um escritório de agência de terras. Após cinco anos, a infelicidade no trabalho o levou à decisão de se tornar um escritor profissional. Acabou indo morar com a sua mãe em Londres. Permitiu-se ser sustentado por sua mãe por três anos. No período entre os anos de 1875 e 1883 saíram oito romances, mas logo ficou evidente que o seu talento estava no teatro, como dramaturgo.

O ano de 1879 teve maior significado para Shaw. Ele se juntou à Zetetical Society, um clube de debates, cujos membros mantinham longas discussões sobre assuntos como economia, ciência e religião. Logo ele se viu requisitado como orador e, assim, tornou-se um participante regular de reuniões públicas. Em uma dessas reuniões, realizada em setembro de 1882, ele ouviu fascinado Henry George, um apóstolo da nacionalização da terra e do imposto único. Isso despertou o seu interesse em economia e em teoria social. Nesse período Shaw teve acesso às teorias de Karl Marx e começou a ler “O Capital”. de Karl Marx, em francês, já que não havia nenhuma tradução para o inglês. Ele foi imediatamente convertido ao socialismo. 

Graças à influência de William Archer, um novo estágio na sua carreira emergiu. Tornou-se um crítico teatral. Apesar de saber muito pouco sobre arte, ele pensava muito sobre arte, e isso era uma condição importante para exercer o ofício. Foi quando conheceu Ibsen. De um modo geral a escrita de Ibsen era visto como um farejador da sujeira social.,  Shaw era fascinado pela obra do autor, o considerava um grande filósofo ético e crítico social.

Em 1894, Bernard Shaw escreveu “O Homem e as Armas”, cuja resenha encontra-se aqui no site. A peça é uma sátira à bravura, é uma crítica à literatura romântica que simplifica a existência humana, glorificando as realizações humanas no amor e na guerra sem reconhecer as realidades horríveis que também estão presentes, tanto na nobreza como na guerra.

No mesmo ano, Bernard Shaw escreveu a peça de que falaremos hoje: “A Profissão da Senhora Warren”. Vamos falar sobre essa peça?

A história se passa na Inglaterra vitoriana, onde a prostituição era considerada um problema social. A prostituição era tratada como um problema moral causado por mulheres sexualmente desviantes que não seguiram a proibição do sexo fora do casamento. Ao mesmo tempo, o sexo era amplamente visto como uma atividade legítima não apenas para fins reprodutivos – mas a maioria dos homens, incluindo os casados e felizes, frequentavam prostitutas. As condições econômicas que levavam as mulheres a se tornarem profissionais do sexo não eram geralmente consideradas por aqueles que protestavam contra a prostituição como um mal social. Em vez disso, acreditava-se que as mulheres pobres se tornavam prostitutas por preguiça ou tédio.

Ao mesmo tempo, surtos de doenças sexualmente transmissíveis paralisaram muitas vezes as Forças Armadas e infectavam mulheres casadas cujos maridos frequentavam corpos de prostitutas.

A partir de 1864, a Lei de Doenças Contagiosas permitia que a polícia obrigasse qualquer mulher suspeita de prostituição a ser examinada por médicos. Se uma mulher fosse encontrada com uma doença sexualmente transmissível, ela seria presa por um ano até que fosse totalmente curada.

A peça “A Profissão da Sra. Warren” é uma peça que força o público a considerar o problema da exploração das mulheres na sociedade britânica. A peça desafia a ideia de que trabalhar como prostituta é imoral. Bernard Shaw sugere que a sociedade é imoral porque limita as oportunidades para as mulheres, proporcionando ganhar mais dinheiro como prostituta do que em um trabalho tradicional.

A peça sugere que vários indivíduos compartilham a responsabilidade pessoal pela exploração das mulheres, desde aqueles que investem em bordéis até aqueles que possuem fábricas onde as mulheres são mal pagas, até os que aceitam os lucros de qualquer negócio que trate as mulheres de forma injusta. A peça aponta dois fatores que levam à exploração das mulheres: o número limitado de profissões abertas às mulheres e as más condições nessas profissões.

A peça “A Profissão da Senhora Warren” está dividida em quatro atos.

O primeiro ato se passa em um jardim de uma casa de campo, onde mora Vivie Warren, uma mulher determinada e autoconfiante e bem-educada. Vemos o Sr. Praed, um amigo de sua mãe se aproximando de Vivie, um homem com inclinações artísticas. Vivie logo de cara diz a Praed que pretende levar uma vida prática, entrando nos negócios com a sua amiga Honória Fraser para trabalhar com direito, seguros e finanças. Praed defende uma vida de valorização estética, mas Vivie responde que passou algum tempo com artistas em shows e museus e estava entediada.

“Vivie: Sim, eu descobri. No ano passado estive durante seis semana em Londres, com Honoria Frazer. Minha mãe pensava que estivéssemos passeando, mas, na verdade, passávamos os dias no estúdio de Honoria em Chancery Lane. Eu a ajudava como podia nos cálculos para os tabeliães. Quando nós ficávamos fumando e conversando, e assim passávamos toda a tarde. Nunca me diverti tanto em minha vida. Com esse trabalho tive duas vantagens: a de ganhar o suficiente para pagar as minhas despesas e de poder iniciar-me na profissão sem gastar um tostão.

Praed: Louvado seja Deus! A Senhora chama isso de descobrir a arte?

Vivie: Espere um pouco. Também entrei em contato com a arte. Conheci em Londres um grupo de artistas que me levaram a visitar a National Gallery...

 Praed (aprovando): Ah!...

Vivie: a Opera...

 Praed (com maior aprovação): Òtimo!...

 Vivie: em um concerto onde uma orquestra tocava Bethoven e Wagner toda a tarde. Eu não faria isso de novo por nada no mundo. Suportei por delicadeza até o terceiro dia. Depois confessei que não aguentava mais e voltei para Chancery Lane. Agora o senhor sabe que espécie maravilhosa de moça moderna que eu sou. O senhor pensa que eu poderei me dar bem com a minha mãe?” (pg17 pg18)

Vivie sempre morou longe de sua mãe. Praed se recusa a contar a Vivie sobre sua mãe. Mas nesse instante aparece a barulhenta e bem vestida Kitty Warren juntamente com Sir George Crots, o rico playboy de meia-idade. Praed sugere tratar sua filha com respeito. A Sra. Warren zomba dele e diz que ela sabe como tratar sua própria filha. Quando a Sra. Warren deixa Crofts e Praed sozinhos, os dois conversam. Crofts pergunta a Praed se ele sabe quem é o pai de Vivie.

 “Crofts: gostaria de fazer uma pergunta um tanto delicada.

 Praed: pois não. (pega a cadeira onde estava sentada a Sra Warren, e senta-se perto de Crofts)

Crofts: Assim está bem. Poderia nos ouvir da janela. Alguma vez Kitty lhe falou sobre o pai da menina?

 Praed: Não nunca.

 Crofts: Suspeita quem possa ter sido?

Praed: Não

 Crofts (incrédulo); compreendo que você não queira contar um segredo que ela lhe confiou. Mas é profundamente desagradável essa situação, agora que teremos de encontra a menina todos os dias. Não sabemos exatamente quais os sentimentos que deveremos ter em relação a ela.

 Praed: que diferença faz sabermos ou não quem foi o seu pai? Nós devemos aceita-la pelos seus próprios méritos. Que importa quem tenha sido o seu pai?

 Crofts: Então você sabe quem foi?

 Praed: Eu disse que não, ainda há pouco. Não me ouviu?

Crofts: Eu lhe peço isso. Praed como um favor pessoal. Se você sabe (Praed faz um movimento de impaciência) ... estou apenas falando, se você sabe poderia me tranquilizar. Porque na verdade eu me sinto atraído.

 Praed: (com severidade): O que você quer dizer?

 Crofts:  Oh! Não se assuste. É apenas um sentimento inocente. Praed tudo isso me deixa muito preocupado, porque pelo que sei, eu posso ser o pai de Vivie.” (pg27; pg28).

No segundo ato o grupo, depois de um passeio noturno, prepara-se para jantar. A Sra. Warren e Frank são os primeiros a chegar. Frank flerta com a Sra. Warren, e ela o beija, mas depois diz que era um beijo maternal.

“Frank: (cortejando-a galantemente com um tom acariciante de voz.) É impossível, minha querida Sra. Warren. É mal de família.

(A Sra. Warren finge dar uma bofetada; depois olha para o belo rosto sorridente do rapaz, tentada. Finalmente o beija e, imediatamente, volta-se irritada consigo mesma).

Warren: Ora veja! Não deveria ter feito isso. Eu sou mesmo impossível. Mas não dê importância, meu querido. Foi apenas um beijo maternal. Vá se embora. Vivie está a sua espera. Vá brincar com ela.” (pg45)

Frank revela a Sra. Warren que está cortejando Vivie. Crofts e o reverendo Gardner entram, e a Sra. Warren pergunta impacientemente por Praed. Crofts e o reverendo Gardner se opõem à aproximação de Frank com Vivie.

Quando a Sra. Warren percebe que Frank é um rapaz desprovido de fortuna, ela imediatamente descarta esse casamento. Ao mesmo tempo diz a Crofts que não está gostando da forma como ele olha Vivie. Ele diz que quer se casar com Vivie e sugere que poucos homens aceitariam Sra. Warren como sogra. Ele se oferece a pagar um cheque no dia do casamento e deixar todo o seu dinheiro para Vivie quando ele morrer. A Sra. Warren o insulta.

“Crofits: Pois bem, ainda não cheguei aos cinquenta anos e a minha fortuna é mais sólida hoje do que antes.

 Warren (interrompendo lhe) É natural que seja, pois você é um usurário corrompido.

 Crofits: (continuando)

... e um barrão não se encontra todos os dias. Nenhum outro homem gostaria de ter você como sogra. Então porque diz que ela não pode se casar comigo?

 Warren: Com você?

Crofits: Nós três poderíamos viver confortavelmente. Eu morreria antes dela, deixando-a na invejável condição de uma viúva bela e rica. Sim, por que não? A ideia não é má.” (pg 59)

Após as mais variáveis discussões, a Sra. Warren é deixada a sós com Vivie. Avalia que Frank é um inútil. Vivie concorda e diz que Crofits também é um inútil. A Sra. Warren se choca com a autoconfiança de sua filha, a sua independência. Irritada, a Sra. Warren proclama qual será o estilo de vida de sua filha.

“Warren (confusa e depois irritada) Não me faça mais perguntas como essa. (com violência) Cuidado com que diz. (Vivei sem perder tempo, continua trabalhando em silêncio) Você e sua maneira de viver, hein? O que virá depois? Sua maneira de viver será aquela que eu determinar, aquela que mais me agradar. Tenho notado que você se modificou muito depois daquele exame. Ou lá que nome tenha! Se você acha que seu sucesso me deixou impressionada, engana-se. Quanto mais cedo souber disso, melhor. (pausa) Isso é tudo quanto precisava lhe dizer. (novamente enraivecida) A mocinha sabe com quem tá falando?

 Vivie (levantando os olhos para ela. Sem levantar a cabeça do livro)

 Não. Quem é você?

Warren (levando-se ofegante de raiva): Demônio!

Vivie: todas essas pessoas sabem quem eu sou, a que classe pertenço, a profissão que pretendo seguir. Mas eu conheço nada a seu respeito. Que espécie de vida pretende que eu leve com você e com Sr Crofits? Diga-me por favor. (pág. 65)

 

Vivie exige saber a identidade de sua mãe e quem é seu pai, e qual o direito sua mãe tem de ditar sua vida. A Sra. Warren garante que Crofts não é seu pai, mas não vai dizer quem é, nem vai falar mais sobre si mesma. 

 “Vivie: Sim, você pode, se quiser. Eu tenho o direito de saber e você sabe muito bem que eu tenho esse direito. Você pode se negar a me dizer, mas se o fizer, me verá amanhã pela última vez.” (pg67)

A Sra. Warren conta a sua história, ela era uma das quatro filhas de uma mãe solteira que se sustentava tendo amantes. Duas meias-irmãs da Sra. Warren: uma morreu em decorrência de envenenamento por chumbo no trabalho numa fábrica, enquanto outra se casou com um alcoólatra e viveu na pobreza. Sua irmã Liz fugiu de sua escola. Anos mais tarde, quando a Sra. Warren estava trabalhando longas horas por baixos salários em um bar, ela se encontra com Liz, que havia se tornado prostituta e sugeriu que sua irmã fizesse o mesmo.

 Liz emprestou dinheiro à Sra. Warren para começar a trabalhar e elas acabam montando uma cadeia de bordéis por toda a Europa juntas. Liz agora vive uma vida respeitável de uma mulher de classe alta. A Sra. Warren defende junto à sua Vivie a sua opção, sua decisão de entrar para o trabalho sexual, dizendo que era a única oportunidade que uma mulher pobre como ela tinha de ganhar a vida razoável. Ela diz que, enquanto as mulheres de classe alta tentam se casar com homens ricos, as mulheres de classe baixa só podem esperar vender seus corpos por sexo. Em outras palavras, o casamento e o trabalho sexual são semelhantes. Por isso Sra. Warren mantém um autorrespeito por ter administrado seus bordéis. Vivie admira a coragem e a veracidade de sua mãe. Vivi promete tratá-la com carinho. E elas se abraçam.

O terceiro ato acontece na manhã seguinte no jardim do lado de fora da reitoria onde o reverendo Gardner trabalha. Frank e o reverendo ficam um pouco enojados.

“Frank: Temos que encontrar um meio de mandar a velha para a cidade. Praed. Diga-me, Praed, sinceramente, você gosta de ver as duas reunidas. Vivie e sua mãe?

Praed: E por que não?

Frank: Não lhe provoca arrepios? (rilhando os dentes) Aquela velha feiticeira, que eu suponho capaz das maiores baixezas do mundo, com Vivie, meu deus! (pg88)

 

Frank questiona Vivie a razão de ela estar de braços dados com a Sra. Warren. Vivie diz que agora entende a sua mãe. Frank diz que, ao contrário de Vivie, ele vê a Sra. Warren como uma pessoa imoral:

“Vivie: Hoje eu conheço minha mãe bem melhor do que vocês” (pg91)

 

Crofts se aproxima e pede para falar com Vivie. Frank sai, mas diz que voltará. Crofts faz uma proposta nada romântica a Vivie, descrevendo-se como um homem rico que sabe pagar o que quer e deixará sua fortuna para ela quando morrer. Quando Vivie recusa, ele diz que é um bom amigo de sua mãe e que emprestou dinheiro para sua mãe começar o negócio.

Vivie fica chocada e diz que achava que a mãe havia encerrado o negócio.  Crofts acha um absurdo encerrar um negócio que está indo tão bem. Ele ressalta que Vivie sempre viveu desse dinheiro que ela abomina vindo dos bordéis. Vivie fica com a consciência abalada e tenta sair do jardim, mas Crofits a impede. Frank se aproxima com uma arma. Até que Crofts revela que ela e Frank são filhos do reverendo Gardner.

“Crofts: Devo-lhes dizer uma coisa, antes de ir embora. Pode interessar a ambos, visto que são ligados. Permita-me, Sr Frank, apresentar-lhe sua irmã, a filha mais velha do Reverendo Samuel Gardner; Srta. Vivie, seu irmão. Bons dias. (atravessa o portão e se encaminha pela estrada)” (pg106).

O quarto ato acontece no escritório de Fraser and Warren em Londres, onde Vivie está trabalhando agora. Frank vem visitar Vivie para definir que tipo de relacionamento eles terão. Vivie diz que não gostaria de ser nada mais do que uma irmã para ele. Frank pensa que ela está com um novo namorado, mas ela nega. Praed chega para se despedir de Vivie antes de ir para Itália. Ele a convence a ir com ele. Ao ouvir que nessa viagem Bruxelas estava no roteiro, ela revela a profissão de sua mãe para Praed. Os dois partem. Quando chega a Sra. Warren nervosa, dizendo que a filha é muito rica e que pode comprar um lugar de destaque na sociedade elegante e respeitável. A Sra. Warren diz que precisa trabalhar para manter-se ocupada e explica que não faz mal a ninguém.

Vivie diz que não pode respeitar a maneira como a sua mãe vive. A Sra. Warren amaldiçoa Vivie, dizendo que ela roubou sua educação e agora se recusa a cumprir seu dever de filha. Ela sai, recusando-se a apertar-lhe a mão de Vivie. Vivie se senta em sua mesa e, com um suspiro de alívio, fica absorta em seu trabalho.

“A Profissão da Sra. Warren” aborda vários temas, entre eles a objetificação da mulher. A Sra. Warren escolheu uma das únicas profissões disponíveis para as mulheres que queriam permanecer independentes de um homem na época. Fala sobre o privilégio masculino muitas vezes não reconhecido pelos personagens que se beneficiam dele, mas Vivie e a Sra. Warren falam dele como um dado adquirido.

Posso dizer que “A Profissão da Sra. Warren”, de Bernard Shaw, é um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 28 junho 2022 (Atualizado: 28 de junho de 2022) | Tags: Drama, Comédia


< O Doente Imaginário Esperando Godot >
A Profissão da Sra. Warren
autor: Bernard Shaw
editora: Abril Cultural
tradutor: Cláudio Mello e Souza
gênero: Comédia;,Drama;

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

Tempos extremos

Resenhas

Matias na cidade

Resenhas

Quem tem medo de Virginia Woolf?