Livros > Resenhas

A lacuna

Certa vez, lendo um artigo no Jornal do Brasil escrito pelo saudoso Tristão de Ataíde nos anos de chumbo em que o Brasil vivia, ele disse: “O grande problema político causado pelo obscurantismo da direita e o obscurantismo da esquerda é que a maior vítima será sempre a liberdade”. As palavras não foram exatamente essas. Mas o sentido era exatamente esse. Stalinismo, Macarthismo, Nazismo, Maoísmo e adjacências têm na história um destino certo: a lata de lixo

A palavra " lacuna" significa buraco, ou o espaço entre dois objetos. No entanto, também pode ser usada como metáfora, se referindo a um outro tipo de espaço, como a diferença entre os fatos e o que o público pode perceber como verdade.

Escrito sob a forma de memórias, diários, cartas, jornais e transcrições do Congresso, Barbara Kinsolver, em seu romance, nos leva a uma jornada épica. Ela nos conduz a um território cartografado de maneira precisa e nos convida a admirar o esplêndido mar de Isla Pixol na costa mexicana, através da infância de Harrison William Shepherd, um menino minúsculo que esperava a maré encher para mergulhar em uma caverna, sonhando sozinho poder descobrir alguma cidade subaquática com óculos de mergulho. O oceano era onde residiam seus sonhos.

É neste cenário que a história se inicia de maneira cativante, num lugar repleto de aromas como "jasmim, mijo de cachorro, coentro, limão". Nascido nos EUA, de um pai norte-americano que nunca chegou a conhecer, e filho negligenciado de uma mãe mexicana de nome Salomé, dona de uma beleza irresponsável e "frequentada" por diferentes homens, Shepherd vai passar os anos de sua juventude no México com a mãe.

O personagem mantém um diário desde a infância – que faz parte desse livro – mas a forma como o faz é tão complexa quanto a história dele em si; existindo lacunas em sua vida pessoal, e passagens em diferentes culturas através de eventos que moldaram o mundo no período entre 1929 e 1951. Ele se sente um “estrangeiro permanente” dividido entre México e EUA, desenvolvendo rapidamente a perspectiva individual de um "outsider" marcado pela profunda solidão. E sua busca de identidade levará o leitor ao coração de eventos tumultuosos do século XX.

Sozinho e sem educação convencional, a formação de Shepherd se dá através das pessoas que ele encontra em seu caminho enquanto tenta sobreviver: o servo da cozinha que lhe mostra como misturar massas de pastel suave, o colega em uma escola de Virgínia, etc. Vivendo entre as camareiras e trabalhando como cozinheiro, acaba na cozinha de Diego Rivera e Frida Kahlo num desses golpes do destino. Da cozinha passou para ajudante de Rivera , tornando-se misturador de gesso para enormes murais pintados em pontos importantes da cidade, como o Palácio Real na Cidade do México.

Aos poucos vai conhecendo os cantos escuros da mansão e estabelecendo uma intimidade muito peculiar com a exuberante Frida. Torna-se um ouvinte sempre atento às frustrações da artista e surge uma amizade que se estenderá por muitos anos.

Durante esse período formativo da década de 1930, ele descobre uma paixão pela história asteca que o ajuda a compreender as crenças revolucionárias de seus empregadores. Ali, naquela casa, Shepherd conhece Leon Trotsky, o grande líder político da época, um homem que vivia no exílio e que temia por sua própria vida , correndo constantemente o risco de ser assassinado pelos esquadrões da morte de Stalin. Shepherd acompanha então o drama do camarada revolucionário , que vê seus filhos serem mortos apenas por serem filhos de quem são. Trotsky e sua mulher permanecem escoltados na casa de Rivera, na tentativa de continuar a luta dos trabalhadores, mas vivem uma realidade totalmente diferente de 1917. Sem dinheiro, sem exército, sem nada, Trotsky vive apenas da escrita prodigiosa que Shepherd ajudava a ordenar. Em um momento tocante do livro, Trotsky faz um desabafo a Shepherd no quintal da mansão: "Em 1917, eu comandava um exército de cinco milhões de homens. Agora eu comando onze galinhas." O romance oferece assim um olhar crítico sobre a Revolução Russa.

Não há nada de político em Shepherd. Ele não tem lealdades partidárias, embora tenda para o lado dos pobres. Tudo o que deseja é escrever ficção à noite. Com a morte de Trotsky, ele se torna mais independente e consegue escapar para "Gringolândia", EUA, recebendo a missão de enviar para Nova York algumas pinturas de Frida para o MOMA.

A segunda parte do livro ocorre em uma pequena cidade da Carolina do Norte chamada Asheville, em 1940. Shepherd obtém sucesso com seus manuscritos transformando-os em romance, e se torna um escritor com muitos fãs. Sua secretária Violet Brown o ajuda a preservar o conteúdo de seus diários e recortes de jornais – que reuniu ao longo dos anos – para proteger sua memória.

Pouco a pouco o leitor percebe que Shepherd é um homem muito peculiar, que sofre com a fama. Ele não quer ser famoso, quer apenas que a sua escritaeba os méritos devidos. Mas ele não percebe que criou uma lacuna, uma armadilha, contra si próprio. Ao negar o status de celebridade, optando pela linha “sem comentários” e colocar-se absolutamente ausente e solitário, a imprensa fará o que sabe fazer de melhor – compor o "personagem Shepherd".

Kingsolver nos mostra como a opinião pública moldada pela imprensa pode criar em seu imaginário a vida de uma pessoa. Quando a Sra. Brown o acompanhava até as pirâmides de Chichen Itza, os jornais publicaram que ele estava tendo um caso com uma mulher 17 anos mais velha. Ainda assim ele não foii aos jornais para protestar e esclarecer.

Diante da falta de informações sobre sua vida e de seu silêncio, os anos de Macarthismo, Edgard Hoover e do Comitê da Câmara de Atividades Anti Americanas o transformaram em presa fácil. Surgiu um súbito interesse sobre seu passado no México e sua relação com os Comunistas. Como não tinha amigos, apenas a Sra. Violet Brown – o leitor acompanha a distorção de sua história ao vê-lo acusado de espalhar ideias comunistas pelo mundo, através de sua obra.

A autora nos leva a refletir sobre ética, solidão, interesses corporativos, discursos tendenciosos e analisar o comportamento de uma sociedade regida pelo medo, mitos e perseguições. Ela mistura personagens ficcionais com figuras e acontecimentos históricos , e nos leva a uma jornada que engloba tanto o México quanto os Estados Unidos , nas décadas de 30 , 40 e 50.

Barbara Kingsolver constrói o livro sabendo que a parte mais importante de qualquer história são as “lacunas” que nos fazem refletir. Um livro que deve ser lido por leitores experientes e admiradores de uma escrita exemplar. Merecidamente, Bárbara Kingsolver arrebatou o “Orange Prize”, de 2010, um dos prêmios mais prestigiados e reconhecidos do Reino Unido.


Data: 08 agosto 2016 (Atualizado: 08 de agosto de 2016) | Tags: Drama


< Uma certa paz A grande arte >
A lacuna
autor: Barbara Kingsolver
editora: Verus
gênero: Drama;

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

Matias na cidade

Resenhas

Indignação

Vídeos

Depois que você foi embora