O Assassinato do Comendador
Reza a lenda que, em 1978, Haruki Murakami estava nas arquibancadas do Estádio Jingu assistindo a uma partida de beisebol entre o Yakult Swallows e o Hiroshima Carp quando Dave Hilton, um americano, rebateu uma bola. No instante em que a bola foi rebatida, Murakami percebeu que poderia escrever um romance. Ele foi para casa e começou a escrever naquela noite.
Se essa história for realmente verdadeira, foi uma das decisões mais acertadas que Murakami fez em toda a sua vida. E nós, leitores assíduos, agradecemos por essa decisão. “O Assassinato do Comendador” é o romance de que falaremos hoje aqui no site. Publicado em 2017, é um romance bem característico de Murakami: uma mistura de realismo mágico com reflexões introspectivas sobre as relações humanas, a condição humana, solidão.
O livro é composto de dois volumes. No primeiro volume, é feita a apresentação dos personagens. Os eventos iniciais levam o protagonista, que se chama Watashi, à casa de Tomohiko Amada e à descoberta de um quadro. É nesse volume que as bases do mistério são estabelecidas com o surgimento do Comendador.
No segundo volume, muitos mistérios são aprofundados e acontecimentos fantásticos ganham destaque. Questões relacionadas à busca de identidade e à conexão entre mundos tornam-se o foco principal.
Vamos à história?
O narrador/protagonista é um pintor de retratos comerciais por encomenda, obras genéricas e técnicas, despossuídas de emoção. O divórcio de sua ex-mulher fez com que ele começasse a questionar sua vida pessoal e a sua carreira. Via seus retratos como algo superficial. Ele lida com a solidão e o vazio deixados pela separação e pela perda do sentido da vida. Essa crise o leva a buscar um lugar isolado para morar.
A história se enquadra sobre um hiato de nove meses no relacionamento do narrador com sua esposa, durante a qual eles se separam. Sua esposa lhe informa repetidamente que está tendo um caso e quer o divórcio. Watashi (o narrador) imediatamente sai de casa, na cidade de Tóquio, para embarcar em uma viagem de carro. Essa jornada abrange as cidades ao longo da costa de Tohoku, pelas quais o autor teria passado de carro em 2015 antes do triplo desastre de 11 de março de 2011 – o terremoto, seguido de um tsunami e o derretimento nuclear, que devastou a região.
Após algumas semanas na estrada, o narrador se instala numa casa nas montanhas de Odawara, que costumava ser o lar e o estúdio do famoso pintor Tomohiko Amada, agora aposentado, sofrendo de Alzheimer e vivendo em uma clínica geriátrica. Graças a seu grande amigo Masahiko Amada, filho de Tomohiko, Watashi foi morar nesse estúdio.
Após se estabelecer em uma vida tranquila ouvindo discos clássicos, dando aulas de pintura na cidade vizinha e dormindo com uma mulher casada, moradora local, o narrador descobre no sótão uma pintura desconhecida de Tomohiko Amada intitulada “O Assassinato do Comendador”. Pintado em estilo japonês, o quadro retrata um assassinato sangrento envolvendo quatro figuras, que, embora vestidas em trajes antigos da Era Asuka (538-710 d.C.), representam personagens de Dom Giovani, de Mozart.
O quadro “O assassinato do Comendador” impacta profundamente as ações do narrador, que, como já foi dito acima, vive uma crise pessoal. Essa pintura foi encontrada no sótão da casa onde morava. A pintura, envolta em mistério, estava guardada em uma embalagem simples no sótão da casa. Ao descobri-la, ele fica fascinado e ao mesmo tempo intrigado, pois percebe que essa obra de arte, que retrata uma cena fantástica e intensa, carregada de significado enigmático, parece estar ligada a eventos sobrenaturais que ele começa a vivenciar.
Fatos estranhos e desconcertantes começam a acontecer, como ruídos misteriosos no meio da madrugada e a sensação de que está sendo observado. Essa pintura servirá como porta de entrada para o mundo simbólico e fantástico que irá permear a narrativa, influenciando o estado emocional do protagonista e levando-o a investigar seus próprios sentimentos e memórias, e o sentido da arte.
A descoberta dessa pintura desencadeia uma mudança substancial no desenvolvimento da história, ou seja, uma transição em direção ao fantástico, reminiscente de inúmeras histórias de Murakami. Essa pintura tem algo de enigmático e profundamente simbólica. Ela representa uma cena violenta inspirada na ópera Don Giovanni, de Mozart.
Na obra de Mozart, Don Giovani é um sedutor imoral que assassina o Comendador. O espírito do Comendador volta como uma figura sobrenatural (uma estátua que ganha vida) para confrontar Don e trazê-lo à punição, destacando seu papel como agente de justiça e destino. Esse conflito entre o moral e o imoral ressoa com a pintura.
A pintura de Tomohiko Amada, embora ambientada em um contexto japonês, representa de forma surreal uma cena de assassinato que remete diretamente à temática de Don Giovani. A conexão se dá pela ideia de um ato violento (o assassinato do comendador), desencadeando forças sobrenaturais. Murakami utiliza a ópera como inspiração para criar sua própria reflexão artística, trazendo paralelos entre o universo clássico europeu e as tradições japonesas em sua narrativa.
A pintura é muito mais do que uma peça de arte: ela carrega uma energia misteriosa e parece ter ligação com eventos sobrenaturais que começam a se desenrolar na vida do protagonista, como um som de sino vindo do subsolo, o que leva Watashi a explorar cada vez mais o entorno da casa. Isso o conduz a um buraco de som no chão próximo à casa, aparentemente conectado tanto à pintura quanto a experiências sobrenaturais que ele passa a vivenciar, como o surgimento do personagem metafísico “Comendador”.
A história começa a ganhar novos contornos com o aparecimento do empresário bem-sucedido chamado Menshiki, um magnata da TI aposentado de cabelos brancos e bonito. Ele é descrito como um homem carismático, magnético e meticuloso. Tem um cuidado bastante acentuado com sua aparência, vive sozinho em uma mansão moderna, com vista para a casa do narrador.
Menshiki contrata Watashi (o protagonista) para pintar o seu retrato. Ao longo do tempo, ele demonstra um grande interesse em uma menina de 13 anos chamada Mariê Akigawa. Ele acredita que essa menina possa ser sua filha ilegítima. Menshiki havia sido namorado da mãe da menina, que falecera quando a filha ainda era ainda bebê. Menshiki pensava que ela poderia ser sua filha. Os dois tornaram-se amigos.
Mas algo começou a intrigar Watashi. Ele era acordado diversas vezes por um sino que tocava insistentemente todas as noites. Ao vasculhar a propriedade, encontrou algo em uma pilha de pedra, perto de um pequeno santuário xintoísta.
Certa vez, Watashi contou a Menshiki que ouvia o badalar desse sino. Menshiki se lembrou de um conto da coletânea “Contos da Chuva de Primavera”, de Ueda Akinari, da Era do Edo (1603-1868 d.C.), intitulado O Destino que Atravessou Duas Vidas”. A história é sobre um fazendeiro que ouve um sino misterioso vindo do subsolo e, ao escavar o local, encontra um monge sentado lá dentro. Menshiki explica que se trata de uma referência a uma prática budista tântrica japonesa na qual o monge passa fome, entra em um túmulo e lê sutras enquanto toca um sino de oração, alcançando assim o nirvana e tornando-se uma múmia chamada Sokushinbutsu.
Na visão budista, o sokushinbutsu é um exemplo extremo de renúncia ao mundo material, em busca de iluminação e compaixão pela humanidade. Os monges que passavam por esse processo acreditavam estar purificando seus corpos para servir como um exemplo eterno para gerações futuras, demonstrando a capacidade humana de superar os sofrimentos terrenos.
Menshiki financiou alguns paisagistas para escavar as rochas e desenterrar uma misteriosa câmara com tampa. O paisagista-chefe sugere que poderia ter sido um poço, embora o diâmetro seja considerado uma tumba sokushinbutsu, embora não houvesse nenhum monge mumificado dentro dessa tumba. Apenas um sino antigo repousa no chão, e eles não conseguem explicar como alguém pudesse estar enterrado para tocá-lo.
Até que subitamente algo de muito estranho acontece: Watashi é visitado pelo Comendador, um homem de 60 centímetros de altura, idêntico ao personagem da pintura. Há uma sugestão de que ele seria a múmia desaparecida, mas o Comendador admite não ter certeza e apresenta-se como “ideia” que encarnou neste corpo por conveniência. Este Comendador é uma “ideia”, uma metáfora que ganha vida e interage com o protagonista, funcionando como guia enigmático e filosófico no mundo real e no mundo das ideias.
Não fica claro que tipo de “ideia” o Comendador poderia representar. Embora seu papel na trama seja o de uma espécie de guia espiritual que auxilia Watashi de várias maneiras, ele também proporciona brilho cômico com sua telepatia, diálogos afetados e a sua capacidade de desaparecer gradativamente como o gato de Cheshire de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll.
As obras de Murakami caracterizam-se por referências explícitas e pela intertextualidade. E como essa intertextualidade se manifesta?
Em “Barba Azul”, de Charles Perrault, a esposa recebe as chaves da casa, mas é proibida de abrir o último quarto. Sua curiosidade a leva a transgredir a regra e descobrir o segredo sombrio: os corpos das esposas anteriores. Em “O Assassinato do Comendador”, o protagonista, Watashi, que vive em uma casa isolada de Tomohiko Amada, é levado por um som a uma descoberta proibida, uma câmara de pedra selada sob o santuário, o que desencadeia os efeitos fantásticos. Em Bartók, “O Castelo do Barba Azul” a esposa, Judith, insiste que Barba Azul abra as sete portas fechadas, revelando, por exemplo, a câmera de torturas, um lago de lágrimas e a última das ex-esposas vivas. Essas insistências em abrir o que seria selado para entender a escuridão do outro ressoa na determinação do narrador em expor o mistério na casa de Tomohiko Amada.
Watashi conhece a “suposta” filha de Wataru Menshiki, que se chama Mariê Akikawa. Ela é aluna de pintura dele. Quando Watashi fez o retrato de Menshiki, onde ganhou uma quantia muito boa de dinheiro, acabou recebendo uma outra oferta. Qual? Movido por uma obsessão pessoal e o mistério de seu próprio passado, ele pede ao pintor que faça o retrato de sua “suposta” filha, Mariê Akikawa.
“- Mariê Akikawa, que talvez seja sua filha, mora em uma casa do outro lado do vale – procurei resumir as informações que eu tinha – E você deseja que eu peça a ela que pose para um retrato?
- Exatamente. No entanto, perceba que não estou encomendando esse retrato. Estou pedindo um favor. Agora, quando a pintura ficar pronta, eu gostaria de comprá-la, se você não se importar. Vou penderá-la em uma parede para vê-la sempre. Isso é o que eu desejo. Ou melhor isso é o que eu gostaria de lhe pedir.
- Mais nada? – perguntei.
Menshiki inspirou e soltou o ar devagar
- Na verdade, tenho só mais um pedido.
- Qual seria?
- É algo muito pequeno – disse ele, com voz baixa, mas um pouco tensa. - Eu gostaria de lhe fazer uma visita casual, como se eu tivesse aparecido por acaso. Pode ser só uma vez por bem pouco tempo. (pág. 293, volume 1)
O pedido de Menshiki é motivado por um misto de sentimentos complexos: uma busca por conexão, o desejo de entender o impacto de seu passado e uma tentativa de enfrentar questões não resolvidas sem romper completamente a fachada de controle e distanciamento. Esse pedido, no entanto, acaba desencadeando muitos elementos narrativos e profundidades emocionais que atravessam o romance.
Watashi concorda em fazer o retrato de Mariê. Ele a encontra e começa a pintar seu retrato na casa das montanhas, acompanhados por sua tia. Os dois desenvolvem uma relação atraídos pela sensibilidade mútua. Mariê é uma menina que traz dentro de si uma melancolia. Uma amizade se instaura entre o pintor e a modelo.
Menshiki, o rico vizinho que havia pedido que Watashi fizesse um retrato de Mariê, é uma figura misteriosa e com um passado sombrio. Ele representa uma força poderosa e ameaçadora que a cerca, especialmente após a morte da mãe de Mariê.
Mariê uma menina introspectiva de 13 anos, que está numa fase de descoberta de si mesma e do mundo ao seu redor. O momento de tensão aparece no decorrer da história quando os mistérios do quadro “O Assassinato do Comendador” e os segredos ao redor de Menshki influenciam Mariê a ponto de ela se esconder na casa dele.
Um outro ponto que precisa ser salientado é sobre a dinâmica entre Mariê e Menshiki, embora ela não saiba sobre a possível paternidade. O estilo de vida refinado e peculiar de Menshiki faz com que ela possa confiar nele. Um outro ponto que precisa ser salientado é que Mariê, embora seja uma menina madura e independente, carrega dificuldades de se relacionar plenamente com os adultos ao seu redor. Esses sentimentos desencadeiam um desejo de fuga. E a casa de Menshiki torna-se o local ideal para escapar.
Pois foi assim que aconteceu, ou seja, Mariê sentiu a necessidade de se isolar e se proteger. Ela se esconde em um dos cômodos da mansão de Menshiki. Mas aqui cabe uma observação. Em todos os romances de Murakami, não há uma explicação prática. O desaparecimento de Mariê assume um lado fantástico que serve a um propósito maior na jornada do protagonista e na dinâmica entre os mundos (real e fantástico).
O Comendador (a Ideia) e o Homem Sem Face (a metáfora dupla) dão a entender que Mariê foi “levada” e forçada a se esconder por uma força metafórica ligada ao próprio mistério da casa e da pintura. O desaparecimento dela é o elemento que faz com que Watashi comece a agir, ou seja, ele desce para dentro do buraco.
No mundo metafórico, Watashi precisa fazer uma travessia e um sacrifício (entregando um amuleto que pertencia a Mariê para o Homem Sem Face) para negociar o retorno da menina. O desaparecimento dela, no entanto, serve como preço para que Watashi complete sua jornada de autoconhecimento e renascimento.
O desaparecimento de Mariê, sendo uma “suposta filha” de Menshiki, representa a inocência ameaçada. Seu desaparecimento é a forma como o mal se manifesta no mundo real para tentar atrair e aprisionar o protagonista:
Watashi resolve entrar no buraco no final do volume um e início do volume dois. O desparecimento de Mariê força Watashi a agir. No entanto, ele conversa com o minúsculo Comendador:
“ – Seja como for, os senhores desejam de todo o coração encontrar com Mariê Akikawa e trazê-la de volta para o lado de cá. Estou correto?
Eu assenti com a cabeça. Ele estava correto.
- Você sabe onde ela está?
- Sei, sim. Inclusive estive com ela agora mesmo.
- Esteve com ela?
- Até conversamos um pouco
- Tá então me fala onde ela está- Eu sei, mas não posso lhe dizer
- Não pode dizer?
- Eu não tenho esse direito
- Mas você disse agora mesmo que está aqui para ajudar.
- É verdade, eu disse.
- E ainda assim não pode me contar onde está Mariê Akikawa?
O Comendador balançou a cabeça.
- Não é meu papel. É uma pena eu admito.
- Então de quem é esse papel?
O comendador estendeu o indicador da mão direita em minha direção.
- Dos senhores. Os senhores é que irão contar por si mesmos. É a única maneira de descobrir o paradeiro de Mariê Alkikawa.
- Eu mesmo vou me contar? Mas não tenho a menor ideia de onde ela está! – exclamei
O comendador soltou um suspiro.
- Os senhores sabem, sim. Apenas não sabem que sabem. Esta conversa está dando voltas.
- Não estou dando voltas. Uma hora os senhores vão entender. Mas em outro lugar, não aqui.
Agora foi minha vez de suspirar.
- Só me diga uma coisa: Mariê foi raptada? Ou se perdeu sozinha?
- Isso os senhores só vão descobrir quando encontrarem e a trouxerem de volta para este mundo.
- Ela está correndo perigo?
- Avaliar se algo é perigoso, ou não vê função das pessoas não das IDEAS. Porém se pretendem trazer aquela jovem de volta, acho devem encontrar o caminho sem demora.
Encontrar o caminho? De que caminho ele estava falando? Encarei o comendador. Tudo aquilo soava como uma charada. Se é que havia uma resposta correta.
- Tá, então o que você veio fazer de útil aqui?
- O que posso fazer é enviar os senhores ao local onde vão encontrar a si mesmos. Mas não será fácil. Para isso será preciso, no mínimo um sacrifício, e os senhores passarão pela provação. Estão de acordo mesmo assim?
Eu não conseguia compreender o que ele queria dizer.
- Mas o que devo fazer, concretamente?
- É bem simples. Os jovens senhores devem me matar – disse o comendador.” (pág. 213; pág. 214, volume 2)
Ele decide entrar no buraco. Ele entra no buraco em um momento de necessidade urgente, não por uma mera curiosidade. A descida é um ato forçado de coragem para enfrentar o desconhecido, sendo o passo final em uma jornada de aceitação do elemento fantástico. E da responsabilidade.
A cena em que o Comendador (a IDEA) pede para ser morto é um dos momentos metafísicos do livro e ocorre em uma realidade de transição, onde as metáforas e ideias interagem diretamente com o protagonista, Watashi.
Reparem que o Comendador na cena acima se refere a duas pessoas. Quem seria o outro que estava com Watashi (o protagonista)? O homem sem face. E quem é o homem sem face? O duplo de Watashi. A metáfora dupla do protagonista. O homem sem face representa o vazio e a ausência de identidade, o inconsciente sombrio. O homem sem face é uma metáfora viva da crise de identidade do pintor. Um espectro que ele deve encarar e, de certa forma, absorver ou dominar, antes de poder se tornar um eu (Watashi) completo e renascido. A sua jornada ao buraco é, em grande parte, uma descida para confrontar a própria sombra.
A descida ao buraco é uma prova física e mental. Descer ao escuro e frio buraco/poço, agindo como um portal para o inconsciente profundo, é um ritual de passagem, onde tempo e espaço perdem o sentido. O encontro com o seu duplo (o homem sem face) o força a confrontar-se com o seu próprio “eu”, que não tem rosto nem nome, aceitando-o como parte de sua identidade. Para conseguir a libertação e o resgate de Mariê, ele deve fazer um sacrifício ao homem sem face, renunciando ao amuleto. Ao passar por todas as provas, Watashi é renascido como um artista capaz de lidar com a ambuiguidade da vida e de aceitar a responsabilidade do futuro.
A saída do buraco é um ponto de transição do estado do “sonho” para o estado de “vigília”, e é marcado por dois fatores cruciais. O confronto final do protagonista com o homem sem face completa o ritual necessário para o resgaste de Mariê. Ele não sai de forma clara. Mas, sim, envolvido por uma escuridão total e silenciosa. Ele só tem certeza de ter saído do buraco quando, em vez de emergir a câmara de pedra selada, ele desperta na casa de Tomohiko Amada, no porão, completamente nu e molhado, como se tivesse passado por um renascimento aquático (semelhante a sair de útero). O sentimento de ter saído do buraco é ligado ao reconhecimento do espaço familiar e real (a casa) e a percepção de que o tempo e o mundo externo voltaram a fazer sentido, finalizando a experiência de tempo distorcido que ele viveu nas profundezas.
“Alguém chamou meu nome lá no alto. Achei que devia ser o meu nome. Lembrei, finalmente, que eu tinha um nome. Pensando bem, eu havia passado muito tempo em mundo onde os nomes não significavam nada.
Demorou algum tempo até eu perceber que esse alguém era Wataru Menshiski. Gritei para responder o seu chamado, mas não saiu nenhuma palavra. Apenas um grito, bem alto, mostrando que eu ainda estava vivo. Eu não tinha muita certeza se minha voz ainda era capaz de fazer vibrar o ar, mas pude ouvi-la...” (pág. 276)
O socorro de Menshiki não o acorda de imediato, mas aos poucos ele vai recuperando a consciência. Menshiki o ajuda a sair do buraco, o que mostra uma ligação entre os dois. A primeira coisa que Menshiki diz é que Mariê está bem, havia sido achada.
Mariê escolheu o esconderijo mais improvável (a casa do homem mais suspeito) não por lógica, mas por uma necessidade psíquica e metafórica. Sua volta é o anticlímax, é a mais “realista” de todo o mistério, o que subverte as expectativas do leitor após toda a viagem metafórica do protagonista. Quando digo “realista” é porque o seu resgate não passa por nenhum portal mágico. Mariê sai do esconderijo depois que o protagonista conclui sua jornada.
Depois de tudo que vivenciou, como o contato com os seus próprios medos e traumas, os questionamentos existenciais provocados por eventos fantásticos e sobrenaturais ocorridos ao longo da trama, o protagonista emerge com uma nova perspectiva sobre a vida e sobre si mesmo. Ele decide retornar à sua atividade artística como pintor de retratos, agora com uma visão transformada sobre a arte e seu propósito. Ele engravida sua ex-mulher em um sonho improvável e retoma seu relacionamento com ela.
Menshiki se relaciona com a tia de Mariê, Shoko Akikawa, numa tentativa de estabelecer uma ponte indireta com a menina, mas também serve para ilustrar as barreiras emocionais que ele impõe a si mesmo. Apesar de haver uma ligação romântica entre eles, a relação tem objetivos indiretos.
Bem, fico por aqui, e como sempre digo: o livro é muito melhor do que a minha resenha. Devo confessar que Murakami é um dos meus autores preferidos.
Sem medo de errar, digo: “O Assassinato do Comendador” merece um lugar de “HONRA” na sua estante.
