Livros > Resenhas

A Câmara Clara

Fico imaginando o que deve ter sido o impacto da fotografia entre os pintores da época. Em um primeiro momento, o sentimento deve ter sido de apreensão. Algo próximo ao que nós estamos vendo hoje com a revolução da Inteligência artificial? Não saberia responder a essa pergunta, mas eu vejo essa nova revolução (Inteligência Artificial) com uma grande apreensão.

Voltando ao efeito da invenção da fotografia entre os pintores e a sua popularização no século XIX. A fotografia exerceu um impacto profundo entre os pintores e o mundo das artes em geral. Longe de desafiar a pintura, a fotografia agiu como catalisador para a inovação e a experimentação. Ela provocou uma reavaliação do papel da pintura, estimulou a exploração de novas técnicas e conceitos e, em última análise, enriqueceu o diálogo entre diferentes formas de expressão artística. A relação entre pintura e fotografia é um testemunho da capacidade da arte de se adaptar e evoluir em resposta a novas tecnologias e percepções.

O título do livro, “A Câmara Clara”, já é um conceito metafórico. Barthes se refere a um dispositivo antigo usado por artistas para desenhar com precisão através da projeção ótica. Barthes usa isso como uma metáfora para a fotografia, que também captura a realidade através dos meios óticos, mas com uma fidelidade e uma imediatez  que transcendem a habilidade humana de reproduzir a realidade.

Em a “Câmara Clara”, de Roland Barthes, a fotografia ocupa um território singular, que se situa na interseção entre a ciência e a arte, um conceito que ele explora com profundidade em sua obra. Segundo Barthes, a fotografia é a única entre as artes a ter um referente “necessariamente real”. Uma pintura pode sugerir que algo seja real, mas não pode prová-lo. A fotografia está sozinha neste poder. Devido ao poder testemunhal, a fotografia não é “codificada”, não pode ter sinais nem ser simbólico.

Para Barthes, a fotografia não se situa nem estritamente na ciência nem na arte, mas em um espaço híbrido entre os dois. Ela é um testemunho da realidade capturada por meio de processos científicos, que ao mesmo tempo serve como veículo para a expressão artística e a comunicação emocional.

“Tecnicamente a fotografia está no entrecruzamento de dois processos inteiramente distintos: um é de ordem química: trata-se da ação da luz sobre certas substâncias: outro é de ordem física: trata-se da formação da imagem através de um dispositivo ótico.” ( pág. 21)

A fotografia é a revelação química do objeto cujos raios recebo com atraso.

Barthes explora três conceitos que formam uma estrutura onde a complexidade da fotografia é explorada. O Operator, que é o fotógrafo que executa o ato de tirar fotografias. O Spectator, que é o observador da fotografia, aquele que vê, interpreta e atribui o significado à imagem. O Spectrum, que é o sujeito da fotografia, a pessoa, objeto ou cena que é capturado pela câmera. Esse termo reflete a natureza quase fantasmagórica da presença capturada na fotografia. Spectrum é ao mesmo tempo ausente ( pois sua imagem é uma representação de um momento do passado) e intensamente presente (pois sua imagem continua a existir na fotografia).

Barthes no convida a considerar não apenas os aspectos técnicos ou estéticos da fotografia, mas também seu poder emocional e existencial, o modo como as fotografias nos conectam com o passado, com os outros e conosco.

A fotografia é a única entre as artes a ter um referente real. Uma pintura pode certamente sugerir que algo era real, mas não pode prová-lo. A fotografia goza de uma especificidade neste quesito. Devido a este poder testemunhal, a fotografia tem uma outra característica.

A fotografia é capaz de criar um corpo. Na medida em que sou olhado pela objetiva, tudo muda. Eu poso, fabrico instantaneamente um outro corpo e metamorfoseio em imagem.

“Diante de uma objetiva sou ao mesmo tempo; aquele que eu me julgo que eu gostaria que me julgassem aquele que o fotografo me julga e aquele que de que será exibido para exibir a sua arte” (pág. 27)

Os fotógrafos realizam uma gama de surpresas. Barthes delineia cinco tipos de surpresas.  A primeira é surpresa do raro, a segunda é quando há alguma ação instantânea, a terceira surpresa é a capacidade técnica, a quarta surpresa são as sobreimpressões, exploração de certos defeitos, e a quinta é quando um fotógrafo pode simplesmente capturar em um momento de sorte ou se deparar com uma cena fotográfica. Deixemos Barthes sobre elas:

  

 “A primeira surpresa  é o do “raro” (raridade do referente, bem entendido); um fotografo, dizem-no com admiração, levou quatro anos de pesquisas para compor uma antologia fotográfica de monstros ( homem com duas cabeças, mulher com três seios, criança com cauda, etc.,; todos sorridentes) A segunda surpresa é, por sua vez, bem conhecida da Pintura, que com frequência reproduziu um gesto apreendido no ponto de seu trajeto em que o olho normal não pode imobilizá-lo ( em outro local chamei esse gesto de numen do quadro histórico): Bonaparte acaba de tocar os Empestados de Jaffa; sua mãe se retira; do mesmo modo, aproveitando sua ação instantaneamente, a Foto imobiliza uma cena rápida em seu tempo decisivo: Aspesteguy, no incêndio de Publicis, fotografa uma mulher que está pulando de uma janela. A terceira surpresa é a da proeza. “Há meio século, Harold D. Edgerton fotografa a queda de uma gota de leite, em milionésimo de segundo” (nem preciso confessar que esse tipo de foto não me  interessa: muito fenomenólogo para gostar de outra coisa que não uma aparência à minha medida). Uma quarta surpresa  é a que o fotógrafo espera das contorções da técnica: sobreimpressões, anamorfoses, exploração voluntária de certos defeitos (desenquadramento, desfocamento, perturbação  das perspectivas); grandes fotógrafos (Gemaine Krull, Kertész, William Klein) jogaram com essas surpresas, sem me convencer, ainda que eu considere seu alcance subversivo. Quinto tipo de surpresa: o achado; Kertész fotografa a janela de uma mansarda; por trás dessa vidraça dois bustos antigos olham para a rua ( gosto de Kertész mas não gosto do humor nem em música nem na fotografia); a cena pode ser arranjada pelo fotógrafo; mas no mundo dos media ilustrados, trata-se  de uma cena “natural” que o bom repórter teve o gênio, isto é, a oportunidade de surpreender; um emir com roupas característica pratica esqui. (pág. 55; pág. 56)

Barthes apresenta dois conceitos fundamentais para a compreensão da fotografia: Studium e Punctum. Esses dois conceitos são essenciais para entender como Barthes percebe e analisa as fotografias, indo além da superfície para explorar as camadas de significado e emoção que elas podem conter.

O Studium refere-se ao interesse cultural e estético que uma fotografia pode provocar em um observador. É aquilo que atrai a atenção de forma geral, o que faz com que uma imagem seja apreciada, estudada e entendida dentro de um contexto mais amplo.  O Studium é, portanto, a fotografia  que se conecta com o conhecimento, o gosto e a educação e a cultura do observador, permitindo ao observador reconhecer temas , ideias e valores representados na imagem.             

No entanto, quando a fotografia afeta a psiquê e evoca mais do que uma avaliação, é por causa do Punctum. Studium e Punctum não são exclusivos; uma mesma fotografia pode conter ambos os elementos. O Studium oferece o contexto, a base sobre a qual o Punctum pode emergir com seu impacto emocional. É altamente subjetivo; é aquilo que se destaca na imagem para um indivíduo, provocando uma resposta emocional profunda e pessoal. Muitas vezes um detalhe insignificante dentro da imagem – um gesto, um objeto ao fundo, uma expressão facial – que captura a atenção do observador e o conecta emocionalmente à fotografia.

Enquanto o Studium pode preparar o terreno para a apreciação da imagem, é o Punctum que a torna verdadeiramente memorável e significativa para o observador. Essa interação entre Studium e Punctum é o que confere às fotografias sua riqueza e complexidade, permitindo que elas sejam ao mesmo tempo objetos de estudo cultural e veículos de experiências emocionais profundas.

O Punctum é o que pica o espectador. O Punctum é um pequeno detalhe que evoca memórias. Um exemplo que Barthes nos oferece em “Câmara Clara” é sua reflexão sobre uma fotografia de sua mãe quando criança, a fotografia do “Jardim de Inverno”. Ele descreve que essa fotografia o afetou profundamente, servindo como exemplo de Punctum por sua capacidade de evocar uma emoção profunda e pessoal, ligada à memória e à perda.

“Eu lia a minha inexistência nas roupas que minha mãe tinha usado antes que pudesse me lembrar dela. Há uma espécie de estupefação em ver um ser familiar vestido de outro modo. Eis, em torno de 1913, minha mãe em traje de passeio, gorro, pluma, luvas, tecido delicado que surge nos punhos e na gola, de um “chique” desmentido pela doçura e simplicidade de seu olhar. É a única vez que a vejo assim, apanhada em uma História ( dos gostos das modas, dos tecidos): minha atenção desvia-se então dela para o acessório que pereceu; pois a roupa é perecível, ela forja para o ser amado um segundo túmulo. Para “reencontrar” minha mãe fugidiamente, é pena, e sem jamais poder manter por muito tempo essa ressureição, é preciso que, bem mais tarde, eu reencontre em algumas fotos os objetos que ela tinha na cômoda, uma caixa de pó de arroz de marfim ( eu gostava do ruído da tampa), um frasco de cristal bisotado, ou ainda uma cadeira baixa que hoje tenho perto de minha cama, ou ainda dos tecidos de ráfia que ela dispões no sofá, as grande sacolas de que ela gostava (cujas formas confortáveis desmentiam a ideia burguesa da “bolsa”). ( pág. 97; pág. 98)

Em seu depoimento, Roland Barthes menciona a sua mãe de maneira profundamente emocional. Essa menção se dá pouco tempo após a morte dela em 1977. Essa referência  ocorre em um contexto onde Barthes explora a natureza da fotografia através de uma foto que ele chama de “A Fotografia de Inverno”, uma imagem de sua mãe quando criança tirada no jardim de inverno de um apartamento familiar.

“Sozinho no apartamento em que ela há pouco tinha morrido, eu ia assim olhando sob a lâmpada, uma a uma, essas fotos de minha mãe, pouco a pouco remontando com ela o tempo, procurando a verdade da face que eu tinha amado. E descobri.

 “A fotografia era muito antiga. Cartonada, os cantos machucados, de uma sépia empalidecido, mal deixavam ver suas crianças de pé, formando um grupo, na extremidade de uma pequena ponte de madeira em um Jardim de Inverno com teto de vidro. Minha mãe tinha na ocasião cinco anos em (1898), seu irmão tinha sete. Ele apoiava as costas da balaustrada da ponte, sobre a qual estendera o braço; ela mais distante, menor, mantinha-se de frente; sentia-se que o fotografo lhe havia dito: “ Um pouco para a frente, para que a gente possa te ver”; ela unira  as mãos , uma segurando a outra por um dedo, como com frequência fazem as crianças num gesto desajeitado. O irmão e a irmã, unidos entre si, eu o sabia, pela desunião dos pais, que se divorciaram pouco tempo depois, tinham posado lado a lado, sozinhos, no espaço aberto entre as folhagens e palmas da estufa ( tratava-se da casa em que minha mãe tinha nascido, Chenneviéres -sur – Marne).

Observei a menina e enfim reencontre a minha mãe. (pág. 102)

Este é um momento crucial no livro, pois marca a exploração do conceito de Punctum. Para Barthes, essa fotografia de sua mãe não apenas evoca uma profunda saudade e dor pela sua perda, mas também se torna um meio através do qual ele pode acessar uma versão dela que ele nunca conheceu: a criança antes de se tornar mãe. Através desta fotografia, Barthes sente finalmente que pode “encontrar” sua mãe, não a figura materna que ele sempre amou, mas como um indivíduo separado com a sua própria história e identidade.

Barthes vê na fotografia algo semelhante à memória involuntária de Marcel Proust. A fotografia em sua capacidade única de registrar o “Isso foi assim”, atuando como uma forma de fazer com que o passado ressurja de forma tão vívida quanto a experiência de Proust com a Madeleine, ou seja, Barthes destaca a capacidade única da fotografia de agir como um veículo para a memória e a recuperação do tempo perdido. A fotografia e a memória involuntária de proustiana são  meios  através dos quais o passado é revelado não como uma reconstrução ou uma narrativa construída, mas como uma presença viva e autêntica.

Para Proust, esses momentos da “memória involuntária” são capazes de trazer o passado à vida com uma vivacidade e uma autenticidade que a memória voluntária, mais consciente e deliberada, não consegue alcançar.

Um outro conceito explorado por Barthes e que aborda o que estamos falando é o conceito de “Isso Foi”(ça a été, em francês). Este conceito discute a relação entre a fotografia, a memória e a realidade, e é fundamental para compreender a abordagem única de Barthes e é fundamental para compreender a abordagem única de Barthes à semiologia da imagem fotográfica.

“Isso Foi” é um conceito que emerge da reflexão que Barthes faz sobre a natureza temporal da imagem. A fotografia é a prova da sua existência, ou de um evento ou de uma pessoa; é a evidência  de que ”isso” ( o sujeito fotografado) “foi”(existiu em um determinado momento). Essa característica confere à fotografia um poder único, pois conecta o presente com um momento específico do passado.

“Isso Foi” faz com que o observador de uma foto se veja confrontado de um momento capturado que já ocorreu e não pode ser alterado; o sujeito da fotografia estava lá, existiu. Esse encontro desperta várias sensações de assombro e melancolia ou luto. De pessoas e lugares que já se foram.

Resumindo, o conceito, “Isso Foi”, de Roland Barthes, é uma reflexão entre o passado e o presente, entre realidade e memória.

“ A fotografia não fala( forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi. Essa sutileza é decisiva.” (pág. 127)

O conceito da fotografia ratifica o que ela representa. A  verdadeira fotografia total realiza a confusão inaudita da realidade (“Isso Foi”) e de verdade (“É Isso!”). A fotografia é uma evidência intensificada, é a prova da própria existência. Com a inteligência artificial nos dias de hoje podemos assistir a um show do falecido cantor Michael Jackson virtual 3D. A imagem de Elis Regina interagindo com sua filha em um comercial recente. Como tudo isso afetará a nossa relação com essa nova tecnologia? Confesso que eu consigo  imaginar, mas não posso prever.

 “A Câmara Clara”, de Roland Barthes, é um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 06 março 2024 (Atualizado: 06 de março de 2024) | Tags: Semiótica


< Futuro Ancestral “Quarto de despejo. Diário de uma favelada” >
A Câmara Clara
autor: Roland Barthes
editora: Nova Fronteira
tradutor: Júlio Castañon Guimarães
gênero: Semiótica;

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

Mitologias