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Paulo Leminski: o bandido que sabia latim

Antes de mais nada, tenho de apresentar o autor deste livro, mesmo correndo o risco de ser conhecido por muitos. Com vocês: Carlos Martins Vaz - Toninho Vaz - curitibano, jornalista, roteirista e entre as tantas facetas que tem, acrescenta em seu currículo uma grande amizade por Paulo Leminski.

A biografia de Toninho Vaz é de um jornalista e não de um acadêmico e para isso mantém o distanciamento necessário para mostrar algumas minúcias da vida do poeta. O livro é simplesmente emocionante. E agradeço ao meu amigo Vinícius Trindade (um discípulo de Leminski) por ter me indicado essa obra. Na época, ele me garantiu de pé junto que se tratava de algo especial. E era. Esta biografia é uma mostra de como é possível viver à flor da pele, sincera e intensamente, todas as escolhas feitas e como focar no trabalho, com afinco e paixão, sempre resulta em sucesso.

Esta biografia resgata a vida deste artista que foi hippie, professor de judô, professor de história e redação, publicitário, tradutor, inveterado conquistador, marido de Alice Ruiz, gênio e doido, ídolo e mestre. Paulo Leminski foi tudo e mais alguma coisa, mas uma coisa ele nunca foi: óbvio. Um poeta que deixou um legado imenso, um intelectual ligado ao seu tempo, que gostava de discutir suas idéias, que deu palestras e entrevistas, e que produziu compulsivamente. Inquieto por natureza desde o mosteiro de São Bento, no início da adolescência, até as aulas-shows no cursinho como professor.

Encontros com Mallarmé, Bashô, Dostoiévski, Cruz e Sousa, Guimarães Rosa, Octávio Paz, Fernando Pessoa, Franz Kafka, entre tantos outros fazem parte de seu cardápio de influências e afinidades eletivas.

Meu primeiro contato com a obra de Paulo Leminski tem dois momentos distintos. O livro “Distraídos venceremos” marcou a minha vida. Cujo o poema destaco:

Deixei alguém nesta sala
que muito se distinguia
de alguém que ninguém se chamava
quando eu desaparecia
Comigo se assemelha
mas só na superfície
Bem lá no fundo, eu palavra:
não passava de um pastiche.
Uns restos, uns traços, uns dias,
meus tios, minhas mães e meus pais
me chamarem de volta pra dentro,
eu ainda não volte jamais.
Mas logo ali, logo ali, nesse espaço,
lá se vai, exemplo de mim,
algo, alguém, mil pedaços,
meio início, meio a meio, sem fim.

O segundo contato que tive com a obra do autor foi ele como biógrafo de Jesus Cristo, Bashô, Cruz e Souza e de Trotski. As quatro biografias são resultados de sua obsessão por essas figuras muito diferentes umas das outras. Em cada um desses ensaios, Leminski foge à cronologia e o movimento da escrita é o de um contador de histórias. Porém, seria ingênuo ficarmos só por aí. Essas narrativas biográficas na verdade são um resgate das figuras que marcam não um homem, mas, a humanidade inteira em diferentes momentos do tempo. A busca dos sentidos pela palavra continua e um dos caminhos escolhidos pelo poeta é a biografia. Desde muito cedo, escrevendo e lendo biografias, viu na vida do outro a possibilidade de colher experiências.

A obra de Paulo Leminski é extensa. Em sua prosa dou destaque para Catatau (prosa experimental, 2ª ed. Porto Alegre, Sulina, 1989.). Agora que são elas (romance) São Paulo, Brasiliense, 1984). Na poesia, Distraídos venceremos (São Paulo, Brasiliense, 1987), La vie en close (São Paulo, Brasiliense, 1991), Caprichos e relaxos (São Paulo, Círculo do Livro, 1987, O ex-estranho (Iluminuras, São Paulo, 1996). E Os melhores poemas de Leminski (seleção de Fred Goes, Global, São Paulo, 1996).

Sobre ele, mestiço de negro e polaco, passou a maior parte do tempo que lhe coube viver em Curitiba, com breves estadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. E foi na capital paranaense que Leminski iria produzir praticamente toda a sua obra e colocar em ação seu ‘motor’ multimídia. Pode-se dizer que ele foi além de si mesmo, sendo: jornalista, publicitário, tradutor, ensaísta, compositor de música popular e romancista. Afinal, para ser poeta é preciso ser mais do que poeta.

Entre os 13 e os 14 anos viveu no mosteiro de São Bento, em São Paulo, e entre uma aula e outra, aprendeu latim, francês e hebraico. E no mesmo reduto beneditino, por meio de D. João Mehlmann, (doutor das Sagradas Escrituras), se aprofundou nos autores gregos lidos diretamente no original e passava horas na biblioteca do Mosteiro. No Mosteiro de São Bento, teve os primeiros contatos com as chamadas “filosofias orientais”, segundo relata o jornalista e amigo Toninho Vaz, biógrafo do escritor. No mosteiro, também, estudou canto gregoriano, que considerava sua única formação musical. Mais tarde, despertou para a música popular, chegando a mais de 50 composições e teve poemas musicados por parceiros como: Moraes Moreira, Itamar Assumpção, José Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso e muitos outros grandes compositores da MPB.

Aos 19 anos conhece os poetas e tradutores Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, os patriarcas do movimento concretista iniciado nos anos 1950, e já naquele tempo alcança sua maturidade. Por muitos anos eles foram seus “gurus” e “mestres”, e tiveram uma relação permeada por cartas, visitas e Leminski e sua família se hospedaram na casa de Augusto de Campos algumas vezes. Mas foi em seus 20 anos que o nosso poeta começaria a aparecer literariamente, apoiado pelos poetas concretistas, em São Paulo. Segundo Toninho Vaz “na sequência ele fundaria, tendo em sua própria casa como sede, o “Núcleo Experimental de Poesia Concreta de Curitiba”.

A vida de intelectual de Paulo Leminski construiu-se através da palavra e por ela foi construído. A palavra é o fio que percorre a sua trajetória de trabalho e a sua ligação intelectual com o mundo. A biografia de Toninho Vaz nos mostra um jovem Leminski que vai abrindo caminhos e delineando o perfil que mais tarde irá se concretizar de uma forma nada comum, sempre longe dos academicismos. Sua vida foi marcada pelo profundo desprendimento pelas coisas materiais. A única coisa que realmente importava era a perfeição do poema. O grande cuidado que o poeta Paulo Leminski tem no percurso de sua vida é a preservação do seu fazer poético. Desse ofício não abriu mão de nada e nem por ninguém.

O interesse pelo mundo oriental não ficou restrito à biografia de Bashô. Faixa-preta de judô, Leminski estudou, praticou e ajudou a disseminar no país a forma poética do haicai, poema curto de 17 sílabas, formado por três versos. Além do haicai, sua atenção foi despertada também para a filosofia zen. O Cha-dô (a arte do chá), um dos caminhos zen, é uma cerimônia conhecida no Japão onde uma roda é feita com a finalidade de sorver a bebida. Leminski utilizando-se de um humor raro diz:

 

Ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo.

Leminski traduziu diversas obras dentre elas destacam-se: Pergunte ao pó, de John Fante, Vida sem fim, de Lawrence Ferlinguetti (com Nelson Ascher e outros tradutores), O supermacho, de Alfred Jarry. Além de Giacomo Joyce, de James Joyce, Sol e Aço de Yukio Mishima, Satyricon de Petrônio e, finalmente, Malone morre, do escritor Samuel Beckett.

O livro pouco a pouco atinge seu clímax na medida em que a angústia autodestrutiva de Paulo Leminski assume a narrativa e  “O bandido que sabia latim" vai arrebatando o leitor.

Quando morreu, em 7 de junho de 1989, aos 44 anos, de cirrose hepática ou “quando pediu a conta para o garçom”, segundo Toninho Vaz, que usa a mesma expressão que Leminski havia usado para anunciar-lhe a morte do irmão Pedro, um vazio, ainda indefinido naquele momento pairou no ar de Curitiba.

Décadas se passaram, os vazios foram preenchidos pelas inúmeras pessoas que escreveram sobre o poeta, reconhecendo seu trabalho incessante e incansável com a palavra na intenção de, com ela e por meio dela, dar forma aos seus diferentes formas de ver o mundo e relacionar-se com outro.

 

Aqui jaz um grande poeta
Nada deixou escrito,
este silêncio, acredito,
são suas obras completas.

Em uma de suas frases cirúrgicas, Millôr Fernandes comenta que, assim como falamos em tecnologia de ponta, podemos falar em ser humano de ponta. Leminski foi um desses, que nasceu imaginariamente pássaro e tornou-se um disco voador.

Uma dica de um grande discípulo de Paulo Leminski é Vinícius Trindade, poeta da mais alta qualidade o qual, dedico a ele a indicação desse grande livro, seu blog é: atestadodeobvio.wordpress.com . Vale a pena conferir.

Paulo Leminski, o bandido que sabia latim, é simplesmente emocionante, sensacional.
Para quem gosta de poesia é um livro fundamental para entender como a palavra e o poeta se entrelaçam.


Data: 08 agosto 2016 (Atualizado: 08 de agosto de 2016) | Tags: Biografias


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Paulo Leminski: o bandido que sabia latim
autor: Toninho Vaz
editora: Record
gênero: Biografias;

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