Os outros Pessoas
22 dezembro 2018 - Luiz Guilherme de Beaurepaire

I. As vozes

Em sua origem, a poesia, a música e a dança eram um todo. Desde o aparecimento da palavra impressa, acentua-se esse divórcio de tal forma que toda vez que se tenta reunir essas artes, a poesia se perde como palavras dissolvidas nos sons. A poesia, em vez de ser algo que se diz, se ouve, converte-se em algo que se escreve e se lê. Para o leitor moderno, a experiência da palavra impressa é solitária.

Com o advento da cultura tipográfica, nas palavras de Mc Luhan, os olhos aceleram-se e a voz silencia. Para entendermos melhor esse grande invento, vamos ao grande teórico da comunicação, Marshal Mc Luhan, que divide a história dos meios de comunicação em três fases: a primeira, a cultura acústica, ou oral, própria das sociedades não alfabetizadas, cujo meio de comunicação por excelência é a palavra oral (dita e escutada). Nos primórdios da humanidade, em seu estágio primitivo, a antiga dimensão oral do conhecimento, o conhecimento era transmitido oralmente, através de lendas e tradições.

A segunda fase é a cultura tipográfica ou visual (Galáxia de Gutenberg), que caracteriza as sociedades alfabetizadas e que, pelo privilégio atribuído à escrita e consequentemente à leitura, traduz-se na valorização do sentido da vista.

Mc Luhan, em seu livro “A Galáxia de Gutemberg”, formula que a sociedade partiu de um estado primitivo, “tribalizado”, onde há um inter-relacionamento entre os sentidos, passando para a cultura tipográfica, em que os sentidos convergem para a visão, “destribalizando” o homem.

A terceira fase é a cultura eletrônica, em que os meios eletrônicos reintegraram os sentidos numa “retribalização” da humanidade.

Com a cultura tipográfica, a “destribalização” se dá através de um forte sentimento de participação nos movimentos totais da mente empenhada no processo de pensar. A palavra impressa é a fase extrema da cultura alfabética. A cultura alfabética, segundo Mc Luhan, é a cultura do moderno individualismo e sua alta expressão na sociedade. Essa nova “tecnologia” faz de cada leitor o centro do universo. A palavra impressa, ao surgir, isola o aspecto visual da palavra e provoca algo de estranho e, porque não dizer, fantástico. Cria uma ruptura entre a cabeça e o coração, entre o espírito e o sentimento, leva ao isolamento de uma emoção a outra, no qual os sentimentos convencionalmente apropriados ficam anestesiados pelo efeito sinestésico. A difusão cada vez mais rápida de informações por meio da palavra impressa criou novas formas de sensibilidade, apresentando instantâneos de momento de uma atitude mental. O leitor tem um forte sentimento de participação nos movimentos totais da mente, empenhada no processo de pensar, oferecendo a ele um surpreendente mundo novo, um modelo de interação entre todos os sentidos conjugados. O homem não vê o mundo: ele está na sua cabeça. Expande-se a subjetividade. O mundo perde a sua realidade e se transforma em figura de linguagem.

O mundo como um grande texto, não mais um texto único (como era na Idade Média cristã). Cada página é a tradução e a metamorfose de outra. Autor e leitor são como dois elementos existenciais da linguagem. O cenário é uma página, uma cidade, um herói solitário e plural em eterno diálogo consigo mesmo, mas também dividindo-se sem cessar.

II. A voz do poeta é ou não é a sua?

Para Platão, o poeta é um possuído. Seu delírio e sua imaginação são sinais de possessão demoníaca. Não é à toa que em sua “República” adverte para os perigos dos poetas no poder. Sócrates definiu o poeta como um ser leve e sagrado, emissário da divindade que nos fala pela boca.

Alguns chamam demônio, outros anjos, musas, espíritos, gênios. Outros mencionam o trabalho árduo de engenharia gramatical (como diz Pessoa). Existem os que atribuem ao acaso o inconsciente, a razão e a origem da voz do poeta. Em seu livro “Signos em rotação”, Octávio Paz diz:

“O dizer do poeta se encarna na comunhão poética. A imagem transmuta o homem e converte-o por sua vez em imagem, espaço, onde os contrários se fundem. É o próprio homem desgarrado desde o nascer, reconcilia-se consigo quando faz imagem, quando se faz outro.” (“Signos em rotação. Octávio Paz. Editora Perspectiva.1978. pg 50).

Não importa quem, o outro existe, tem vida e às vezes se apodera de nós e fala pela nossa boca. A voz alheia, a vontade estranha continua, sendo uma questão que nos desafia.

Existe no homem um conjunto de forças interpessoais que dialogam concordando consigo mesmas, mas também dividindo-se sem cessar. Fernando Pessoa inventou Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e, entre eles, várias questões estéticas, filosóficas e ligadas à própria poesia foram levantadas. É um diálogo opositivo, tendo cada um deles o seu ponto de vista peculiar independentemente de seu criador, principalmente nos textos em prosa em que cada um vai adquirindo suas devidas autonomias.

Outros nomes compõem o acervo de personagens criados por Pessoa, como Alexandre Search, Charles Robert Anon, teórico da percepção, Bernardo Soares, que Pessoa classifica como semi-heterônimo, e Frederico Reis, profundo conhecedor de Ricardo Reis.

A poesia é a outra voz que traduz as paixões, as visões – é a voz do outro mundo e também deste mundo. Nada distingue o poeta dos outros homens e mulheres a não ser nesses movimentos em que, sendo ele mesmo, é outro.

Possessão de forças poderosas, forças estranhas, erupção de fundo psíquico enterrado no mais íntimo do ser. Segundo Octávio Paz, “o outro é a ausência, o vazio interior, essa melancolia bocejante que desafia os poetas. O amor e a cólera são paixões que, por meio de uma operação de linguagem, se transformam em pessoas, não de carne e osso, mas em pessoas imaginárias”.

Essa é uma característica da Idade Moderna, que consiste em criar divindades abstratas. Começa com o descobrimento do duplo infinito: o cósmico e o psíquico. O romantismo introduziu o elemento subjetivo como tema do poema: o eu do poeta, sua própria pessoa, o poema do poeta. Os assuntos são psicológicos, filosóficos, sobretudo poéticos e religiosos.

Essa mudança de realidade que a modernidade traz em seu bojo é a mudança de mitologia. Antes, o homem falava sobre o universo, ou dizia que falava. O universo era o seu espelho. No século XX, o interlocutor mítico e suas vozes misteriosas se evaporam. Os planetas já não desempenham mais nenhum papel no horóscopo, eles não anunciam mais nada.

Era crucial para Pessoa, como base de toda a sua criação poética, que ele antes de tudo dissolvesse a imagem do eu, que a esvaziasse da sua falsa unidade identitária. Compondo não somente por meio de percepções recognitivas, mas por sensações inventadas pelo pensamento. Por isso, se conclui que o heterônimo não tem uma identidade inteiramente fixa, mas apenas um contorno, cheio de virtualidades.

O homem ficou na cidade imensa. E o herói dessa poesia é um solitário na multidão, cujo ego estava dissolvido na matéria em movimento.

III. As outras vozes em Fernando Pessoa

A singularidade de Fernando Pessoa não vem de suas atitudes. Vem, em primeiro lugar, da forte negação de si mesmo. Ele optou pela negação do ser. Um realizador do ceticismo total, que vive e pensa virtualmente. Um poeta que foi muitas pessoas, sendo que nenhuma delas era ele mesmo. Penetrando nessa dimensão do não ser ou nesses seres que não era, ele se analisava:

“Desde que tenho consciência de mim mesmo, apercebi-me de uma tendência nata em mim mesmo para mistificação, para mentira artística” (“Fernando Pessoa. Obras em Prosa. Estudo Introdutório”. Cleonice Berardinelli).

Existia algo muito intenso e profundo que o levava a negar a sua existência: a sua incapacidade de amar. Incapacidade essa, segundo Jorge Sena, que não deve ser entendida como impotência física, ou uma impotência de raiz psíquica. É algo muito mais radical que isso. Está na sua incapacidade de desejar, e fundir o desejo e a ternura.

Fernando Pessoa levou até as últimas consequências as condições estéticas da existência humana. Se, para um determinado Fernando Pessoa, o amor era a força motriz do ser e do pensar, havia outro que dizia simplesmente que amor não era. Se, por um lado, Fernando Pessoa foi a própria dialética do pensamento, que sofreu dolorosamente, havia outro que, angustiadamente, dizia que o sofrimento não existia. Houve um Fernando Pessoa que se identificou com a história, com ação e destino, a ponto de transformar história em epigramas, e mitos do Quinto Império, porém houve outro sensacionista que demonstrou absoluta indiferença para com a humanidade, a religião e a pátria. Um Pessoa acreditou em Deus, porém havia outro que acreditava em intercessores celestiais.

Um Fernando Pessoa escreveu para ser, outro escreveu para não ser, chegando até a mencionar o suicídio. Um era uma estrutura fechada sobre si mesmo, o outro necessitava reconstruir-se para se dissipar.

Nos labirintos da “floresta do alheamento”, Fernando Pessoa se perde, dissipa-se, despersonaliza-se dramaticamente, identificando-se com a pluralidade virtual do “eu”. Ele mesmo reconheceu em si a falta de vontade para ação.

“Na Clepsídia da nossa imperfeição, gotas regulares de sonhos marcaram horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo senão saber que nada vale a pena...” (Fernando Pessoa. “Floresta do alheamento in Obra poética”. Editora Nova Aguilar. 1976. pg 437)

O interesse pela linguagem enquanto vivência estética se dá nele de uma forma diferente. Sua identidade suspende-se e sua personalidade opta pelo apagamento e pela anulação no processo de criação estética. Seu espiritualismo chega a essa “Floresta do Alheamento” como criaturas que nele e por ele escrevem outros.

“Ó felicidade... Ó eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sozinho por detrás da minha atenção, sonha comigo alguém... E talvez eu não seja, senão, um sonho desse alguém que não existe” (“Obra poética de Fernando Pessoa”. Nova Aguilar. 1976.  pg 436)

Fernando Pessoa minimiza todas as ilusões de grandeza, abdica de tudo, chama para si, no fundo de sua consciência, a missão de negar o mundo, e realizar, em vez dele, um outro. Uma pluralidade que se instalou em nome do direito do não ser. Esse é, no meu modo de ver, o grande tema da obra poética de Pessoa: a experiência da inexistência de um eu profundo, a vertigem do sujeito. Fernando Pessoa viveu uma época em que o indivíduo moderno tinha densidade, pois era reverenciado pela História. Esse indivíduo calcado em sua imanência (o indivíduo igual a ele mesmo) foi legitimado pelas duas grandes vertentes da modernidade: o marxismo e o freudismo. O primeiro atribui uma dimensão histórica aos indivíduos, e o segundo, através do conceito de inconsciente, legitima uma singularidade de uma verdade subjetiva.

Gostaria de fazer aqui um breve parêntese: existe uma tendência de associar Fernando Pessoa à pós-modernidade por causa de sua personalidade multifacetada. O sujeito pós-moderno traz a ruptura desse sujeito histórico e psicanalítico; porém, os indivíduos na pós-modernidade tentam resgatar uma verdade psicológica, uma densidade qualquer, através do consumo e da manipulação de signos de subjetividade, provenientes desse excesso de discurso, desse excesso de prática sobre o indivíduo, o que se traduz na sua abstração e na sua diluição.

Fernando Pessoa levou ao limite a vivência dos “eus” paralelos ou heterônimos, mas é importante dizer que ele, assim, os viveu dentro de um plano de imanência, porém sem exibir conjecturas utópicas, ou inconsciente à deriva. Em sua obra, a heteronomia é uma crítica radical da unidade de consciência. É a mais clara demonstração de esvaziamento da ideia de personalidade. Qualquer referencial que se busque nessa verdade inscrita na personalidade está condenado a ser efeito de personalidade, mitificação e simulacro de si mesmo. Esse é o dado novo que ele nos dá de bandeja; a noção de personalidade em Pessoa dá lugar à superposição de identidades.

“E assim, nós morremos a nossa vida, tão atentos, separadamente a morrê-la, que não reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um de si, um mero eco de seu próprio ser.” (“Obras Completas”. Editora Nova Aguilar. pg 439)

Fernando Pessoa, habitante da cidade de Lisboa, viveu intensamente a experiência da anulação. No mundo fictício que criou para si, seus personagens fazem da fragmentação um tema. Podemos até arriscar a dizer:uma estratégia. Ele não tinha nada a perder a não ser o território da identidade psicológica. O sujeito implodindo, a total impossibilidade do conhecer pleno daquele eu último que permeia todas as pluralidades.

“A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheios de sermos nós... E isto porque sabíamos como toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade.

Éramos uma realidade. Éramos impessoais ocos de nós, outra coisa qualquer. Éramos aquela paisagem esfumada, em consciência de si próprio... E assim, como ela, era duas – de realidade que era ilusão – assim éramos nós, obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele próprio, se o incerto outro vivera.” (“Obras Completas”. Editora Aguilar. Pg 439)

IV. Androginia em Fernando Pessoa

Foi Platão quem nos transmitiu o mito do andrógino. Os homens, a princípio, eram andróginos e estes chegaram a ser uma ameaça para os deuses, que acabaram separando-os em homens e mulheres. A androginia é um arquétipo cósmico, independentemente do idealismo que Jung emprestou ao termo. Toda a vida natural encerra o masculino e o feminino. Nos ritos sexuais de alguns povos primitivos, uma pequena cirurgia transformava homem em mulher e mulher em homem, conforme o caso. Adão, a princípio, era andrógino. A angelologia designa os anjos como seres andróginos. Deus, segundo os antigos, era andrógino. Era símbolo do dualismo que caracterizava o mundo terreno. O culto da androginia e do erotismo, ao qual ele está ligado, manifesta o desejo de se identificar como Deus supremo. A androgenia é o sexo artístico por excelência. A Gioconda de Leonardo da Vinci, representa um símbolo universal, unindo a capacidade cerebral do homem e a sensualidade da mulher.

O mito do andrógino habitava o pensamento de Fernando Pessoa. Ele achava que cada ser humano tinha direito a satisfações eróticas de sua preferência. Essa é uma opinião que vai de encontro a qualquer moral convencional e normativa vivida em sua época. Esse amoralismo é o aparente reflexo que o mito do andrógino representa em seu ideário. Um dos textos, sob o título “Rosacruz”, apresenta a luz do rosacrucianismo, um deus essencialmente andrógino.

“A dupla essência, masculina e feminina, de Deus – a cruz (que nega no próprio ato criador do mundo) – a rosa crucificada em Deus.” (“Fernando Pessoa. Obras em Prosa – estudo introdutório”, Cleonice Berardinelli.)

Fernando Pessoa viveu em uma época cuja cultura tendia para o reconhecimento desses mitos que tiveram, em várias fases da cultura ocidental, um valor ostensivo. Somos todos andróginos, e é desse equilíbrio andrógino que se dá a nossa diferenciação sexual. Fernando Pessoa não teve oportunidade de se definir sexualmente, mas isso não significa necessariamente a existência de uma homossexualidade latente, mas de um fascínio por uma realização erótica andrógina, na medida em que ele procurava em outro não a metade ideal, mas o complemento da carência que sentia na metade que procurava e não na procurada.

Fernando Pessoa procura no “outro” não a metade ideal, mas a consciência da deficiência de uma realidade. Porém, a androginia a que ele se refere é a psico-hormonal, e não a androginia anatômica ou comportamental. Isso, para Pessoa, leva ao equilíbrio: o equilíbrio causado pela consciência da divisão da consciência.

“Poder sonhar o inconcebível viabilizando-o é um dos grandes triunfos que não eu, que sou tão grande, senão raras vezes atinjo. Sim, sonhar que sou por exemplo, simultaneamente, separadamente, inconfusamente, o homem e a mulher dum passeio que um homem e uma mulher dão à beira-rio. Ver-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo modo, sem mistura, sendo as duas coisas com igual integração nelas, um navio consciente num mar do sul a uma página impressa dum livro antigo. Que absurdo isto parece! Mas tudo é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos.” (“Livro do Desassossego”. Fernando Pessoa. Bernardo Soares. Editora Brasiliense. Pg 159,160) 

Lídia é um duplo feminino de sua alma que dialoga solitariamente.“Não só quem nos odeia ou nos inveja

Nos limita e oprime; quem nos ama

Não nos limita

Que os deuses me concedam que, despido

De afetos, tenho a fria liberdade

Dos pícaros sem nada.

É livre: quem não tem, e não deseja,

Homem é igual aos deuses” (Fernando Pessoa obras Completas. Editora Nova Aguilar. Pg 284, 285)

Tudo o que se diz sobre a vida sexual de Fernando pessoa não tem precisão absoluta. A única certeza que se tem é aquilo que ele mesmo confessou, ou seja, era um homem solitário.

“Minha mulher, a solidão

Consegue que eu não seja triste.

Ah, que bom é ao coração

Ter este bem que não existe” (“Fernando Pessoa – Obras Completas” Editora Nova Aguilar. Poema 678. Pg 175)

Como observa Jorge Sena, em seu livro sobre os heterônimos, é contraproducente buscar no complexo de Édipo a origem da suposta homossexualidade de Fernando pessoa. A castidade que o poeta viveu pende para o desvio dos instintos. Esse desvio visa a satisfazer a libido, não na natureza, mas fora dela. A tendência ao artificialismo responde a uma inspiração que parte da ideia e das percepções interiores.

“Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi minha vida como uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico que a minha consciência de mim próprio. Quem ou por detrás dessa realidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco a viver, agir, sentir é – crede-me bem – para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que de corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza” (“Fernando Pessoa. Livro do Desassossego”. Editora Brasiliense. pg 175)

V. O Ocultismo e realidades paralelas em Fernando Pessoa

Fernando Pessoa não encontrou a plenitude na vida. Ele só encontrou a sua própria plenitude em sua imaginação. No caso específico dele, desde criança, teve tendência a criar em torno de si um mundo fictício, ou seja, de se cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. Figuras irreais povoaram seu universo, como um tal de Chevalier de Pas, que aparecia para Pessoa quando ele tinha seis anos. E, assim, outros invisíveis companheiros fizeram parte de seu círculo de amizades. Ele não se alegrou apenas em contemplar as imagens por ele criadas, mas se excitava com os seus próprios sonhos. A imaginação vale mais que a realidade para Fernando Pessoa.

A vida da imaginação por mórbida que pareça é contudo aquela que calha aos temperamentos como é o meu.” (“Fernando Pessoa. Livro do Desassossego”. Bernardo Soares. Editora Brasiliense. Pg 328)

Esse afastamento de sua natureza provocou uma diminuição de sua personalidade. A distância do erotismo e da vida social fez com que se expressasse através de personalidades que só existiam em níveis mais superiores e mais artificiais da consciência. Esse isolamento não compreendia uma pretensa busca de felicidade, nem de tranquilidade, mas de sono, de apagamento e de renúncia.

“As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sequer, perdido no torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada o antessabor da morte e do apagamento.” (“Fernando Pessoa Livro do Desassossego”. Bernardo Soares. Editora Brasiliense. Pg 164)

O hábito de inventar personagens se transforma, em Fernando Pessoa, na sua salvação pessoal.

“Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.

Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças.” (“Fernando Pessoa. Livro do Desassossego”. Bernardo Soares. Editora Brasiliense. Pg 160)

Sua poesia mantém relações com companheiros fantasmagóricos. Quando Pessoa escreveu de uma forma alucinante o “Guardador de Rebanhos”, o que se seguiu foi o aparecimento de alguém que ele logo tratou de dar um nome: Alberto Caeiro. “Aparecia em mim meu mestre. Foi essa a sensação que tive”. “A Chuva Oblíqua”, que fora escrita depois, foi a reação, como Pessoa mesmo diz na carta sobre a gênesis dos heterônimos a Adolfo Casais Monteiro.

“Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim, e parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.” (Páginas de Doutrina estética. Carta sobre a gênese dos heterônimos a Adolfo Casais Monteiro. Pg 265)

Fernando Pessoa induz os seus personagens a serem parasitas de suas emoções e de seu estado de espírito. O hábito de viver na superfície, na casca de suas individualidades, transplanta sua consciência e orienta seus passos no seu caminho, seguindo diversas operações mentais e adaptando-se a elas. Ao fazê-las, vai analisando nele (Fernando Pessoa) o desconhecido da alma, fazendo assim a análise do que eles são e o que pensam.Assim, Fernando Pessoa vive o seu sonho ininterrupto de viver os outros na sua essência, mas compreendendo a lógica das várias forças do seu espírito, que moravam num estado simples de sua alma. Vive os seus sonhos, seus instintos, suas atitudes, criando e sendo, a cada momento, uma multidão de seres.

O homem moderno descobriu soturnos modos de pensar e agir que testemunham uma ausência. O sobrenatural se manifesta como sensação da radical estranheza, estupefação, paralisia, desassossego. O outro se apresenta como algo por definição alheio estranho a nós. É algo que se difere de nós, um ser que é também um não ser. A experiência do outro, segundo Octávio Paz, “apresenta-se como um regresso a algo de que fomos arrancados”. Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares são vozes estranhas que arrancam Fernando Pessoa de si mesmo para ser tudo que deseja: outro corpo, outro ser. A voz do desejo é a voz do ser, porque o ser de Pessoa não é outra coisa que o desejo de ser. Pra isso, refugia-se em si mesmo e cria para si um mundo mágico. Sua poesia é revelação de nossa condição paradoxal da criação do homem pela imagem.

Os heterônimos são as máscaras, na sua tessitura dramática, nunca palco onde cada ator só encontrará o seu sentido no outro. O mascarado faz do seu discurso um ato de representação da carência do ser.

Fernando Pessoa lança-se para ser todos os opostos que o constituem, a ponto de chegar a ser todos eles, porque quando nasceu já os trouxe. Ao ser ele mesmo, é outro, ou melhor, outros. Seus personagens se apresentam em seus poemas como um nó de forças contrárias no qual sua voz se enlaça e se confunde.

O outro existe, tem vida própria e às vezes se apodera e fala pela nossa boca. Mas são seres sem corpos nem formas: são ideias, conceitos, forças. Um mundo povoado de seres sem rostos.

O mundo interior e exterior de Pessoa seguem caminhos diferentes. A descoberta dos diversos “eus” permitiu que ele trabalhasse seu tempo interior e ao mesmo tempo fez de sua vida um laboratório pessoal. O outro, para Fernando Pessoa, é apenas uma maneira de estar sozinho.

 




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