Livros > Resenhas

O vento que arrasa

 “O vento que arrasa”, da escritora Selva Almada, chegou às minhas mãos por uma sugestão de um cliente na livraria. Lembro-me quando esse cliente chegou para mim e disse: “Leia! Você vai adorar”.

 

Peguei o livro em minhas mãos, folheei, e percebi que nunca tinha ouvido falar da escritora, nunca mesmo. Foi quando recebi a notícia que esse livro era o seu primeiro livro publicado no Brasil. Minha ignorância agradeceu.

 

Pode parecer estranho, mas, para um livreiro, não existe coisa pior do que desconhecer por completo um autor ou uma autora. Para quem trabalha com livros, mesmo que você não tenha lido, tem que conhecer alguma coisa nem que seja mínimo esse conhecimento. Mas muitas vezes essas coisas acontecem. Vou ser honestos com vocês, na maioria dos casos acontece. São vários escritores que nos são apresentados diariamente. Volta e meia temos o prazer de conhecer um autor de que nunca ouvimos falar. E quando o livro é bom, é correr para o abraço. É por esse e outros motivos que eu adoro a minha profissão. Todos os dias, um escritor novo na praça.

 

Selva Almada nasceu em Entre Rios, uma província próxima a Buenos Aires. Seus primeiros escritos (contos). na verdade, não tiveram muito sucesso editorial. Mas quando Selva Almada alinhou as velas do seu barco, o vento a arrastou para o sucesso mais do que merecido.

 

O livro pode ser lido numa lufada. São cento e vinte duas páginas. E a narrativa flui como as águas do rio Paraná. Não há mocinhos e nem bandidos, nem o bem e nem o mal. Há situações contraditórias em que a solução não é previsível. E é aí que reside o mistério deste “O vento que arrasa”.

 

“O vento que arrasa” é uma ficção diferente de tudo que já li. Não é uma literatura urbana, a história se passa no interior da Argentina e a autora descreve esse interior como uma paisagista, desenhando cada detalhe e capturando os personagens que se relacionam com a solidão e com o silêncio.

 

“A paisagem era desoladora. A cada tanto, uma árvore negra retorcida, de folhagem irregular, sobre a qual pousava algum pássaro que mais parecia embalsamado, de tão quieto.” (pg58)

 

O livro é cinematográfico. Poucos personagens, e são humanos, demasiado humanos, a narrativa é enxuta, onde o mundano e o divino dialogam. Mas essa cinematografia não fica apenas no exterior, ou seja, nas paisagens descritas, mas no interior de cada um.

 

Selva Almada aprofunda os sentimentos de seus personagens, tornando as cenas e os diálogos existencialmente legíveis. Vamos a ele?

 

O tempo da narrativa começa numa tarde e vai até a manhã seguinte. Em uma garagem no meio de uma paisagem desértica chegam os dois personagens dessa história, o Reverendo Pearson e sua filha Leni. O destino desses dois é a província de Chaco, aonde irão se encontrar com outro reverendo amigo. Por problemas mecânicos, acabam rebocados para essa garagem. Nesse cenário atingido pela seca, trabalham Gringo Brauer e seu afilhado, o menino Tapioca, um garoto com os seus dezesseis anos, e o cão Bayo, que parece escutar e entender tudo. O pastor precisa consertar seu carro e pouco a pouco vão estabelecendo um diálogo. Brauer e o Reverendo vão estabelecendo suas diferenças culturais. primeiro vê a religião como coisa de mulher, e de gente fraca, ou seja, uma forma encontrada pelos homens para se livrar das responsabilidades de cada um a espera de um salvador. Brauer via a natureza como seu livro de sabedoria inesgotável, para isso bastava ver e ouvir o que a natureza tinha para dizer. Esse era o livro que lia.

 

O segundo, o Reverendo Pearson é um orador sacro. Domina a palavra de Deus e possui uma eloquência muito convincente, seus sermões alcançam sua eficácia pela repetição, daí a sua eficiência. Seu objetivo é salvar almas e lutar contra os demônios. Ele não é um enganador. Ele acredita profundamente no que diz. Seu casamento foi um retumbante fracasso, e a única pista que a escritora Selva Almada nos fornece sobre o desenlace desse fracasso matrimonial é pela filha Leni, que recorda de sua mãe através de um retrovisor do carro de seu pai, que a deixou para trás quando era muito pequena. No calor insuportável, Gringo Brauer fuma e tosse. Garrafas de bebidas, sucatas de ferro velho, cheiro de pobreza no campo, sujeira, combustível queimado, um prenúncio de tempestade à noite, insetos, poeira, lama compõem esse cenário. Essa referência é a chave para o que vai acontecer.

 

O Reverendo Pearson enfeitiça com palavras e mensagens do Reino dos céus e entusiasmo religioso e visões apocalípticas do fim mundo o menino Tapioca. O gringo Brauer nota que seu assistente e afilhado, Tapioca, está impressionado e entrando no êxtase que o Reverendo habilmente projeta em sua mente. O mecânico, vendo aquilo tudo acontecendo, apressa-se para consertar o carro a fim de afastar o pastor da casa, mas uma tempestade aproxima-se.

 

A história do nascimento de Tapioca já prenuncia em sua história de vida algo sobrenatural: ele foi batizado nas águas do rio Paraná, numa cerimônia em que todos os presentes estavam vivendo um transe místico, quando um homem mergulhou-o nas águas do rio para purificá-lo para as mãos de Deus.

 

O Reverendo Pearson, pouco a pouco vai persuadindo Tapioca com argumentos escatológicos apocalípticos o que vai minando as precárias convicções do adolescente.

 

“Onde é que você se meteu, garoto? – disse Brauer, limpando as mãos num trapo. - Por ali. Conversando com o homem. - E desde quando você deu para conversador? Tapioca fez um trejeito com a cabeça e retorceu a boca. - E posso saber do que estavam falando? - De Cristo. - De Cristo. Quem diria. -É, é, o homem lá me falou um montão de coisas que não sabia – assentiu entusiasmado. Falou de Cristo? - E do fim do mundo. Gringo, você nem imagina como é que vai ser. E como é que vai ser? – Perguntou Gringo, tirando um cigarro do maço e levando-o à boca. - A coisa vai ser feia. Bem feia. Tapioca sacudiu a cabeça, como se estivesse cheio de pensamentos negros, como se quisesse se livrar deles. Brauer acendeu o cigarro e soltou um jorro de fumaça. O rapaz ergueu a cabeça sorridente. - Mas nós vamos para o Reino dos Céus, porque somos gente do bem. - Ah, que bom, então eu já posso ficar mais tranquilo – disse o Gringo, gozador, se bem que começasse a se preocupar com o entusiasmo religioso do ajudante. - A gente e os cachorros. Porque Cristo gosta de cachorro como se fosse gente. E... e...” (pg 60)  

 

Os sermões do Reverendo Pearson criam uma atmosfera apocalíptica, fala como se estivesse em transe:

 

“Deus nos deu a palavra. A palavra nos distingue do resto dos animais que se movem sob este céu. Mas tomem cuidado com as palavras, são armas que podem estar carregadas pelo Diabo. Quantas vezes vocês não terão dito: como fala bem esse sujeito, que palavras mais bonitas, que vocabulário mais rico, que segurança me inspiram as suas palavras! Chega o patrão e fala com palavras fortes, seguras, que prometem coisas sem fim. Fala como um pai fala aos filhos. Depois de ouvi-los, vocês comentarão entre vocês: como nos falou bem esse homem, suas palavras são simples e verdadeiras, fala conosco como se fôssemos seus filhos, deu a entender que, se ficarmos com ele e fizermos o que manda, ele nos terá para sempre sob suas asas, como se fôssemos um filho a mais, nada há de faltar, disse com todas as letras, com palavras simples, falou como se fala a um igual. Chega o político e fala com palavras bonitas, é como se saísse música de sua boca, nunca ninguém falou com vocês em termos tão bonitos assim, ninguém nunca falou assim de uma vez, sem perder o fôlego. E vocês ficam maravilhados depois de ouvir um discurso tão floreado, tão bem escrito, com tantas palavras tiradas do dicionário, com tanta correção. Saem pensando que esse sim é um bom homem, que pensa no bem de todos, que pensa como vocês, que representa vocês. Mas eu lhes digo: desconfiem das palavras fortes e das palavras bonitas. Desconfiem da palavra do patrão e do político. Desconfiem de quem se diz pai ou amigo. Desconfiem desses homens que falam pela boca e em nome dos interesses de vocês. Vocês já tem um pai, e esse pai é Deus. Vocês já têm um amigo, e esse amigo é Cristo. Todo resto são palavras. Palavras que o vento leva. Vocês têm suas próprias palavras, o poder da palavra, e têm que se fazer ouvir. Deus não escuta a quem fala mais alto ou mais bonito, mas a quem fala com a verdade e com coração. Deixem que Cristo fale por sua boca, deixem que sua língua se mova ao ritmo de Sua palavra, que é única e verdadeira. Carreguem vocês mesmos a arma da palavra e apontem, disparem contra os charlatões, os mentirosos e os falsos profetas. Deixem que reine em vocês a palavra de Deus, que é viva e eficaz e mais afiada que qualquer espada de dois gumes e que penetra até partir ao meio a alma e o espírito, os ossos e as medulas, e discerne os pensamentos e as intenções do coração. Pensem nisso e deem testemunho. Louvado seja a palavra do Pai e do Filho”. (Pg43)

 

Querem saber o final dessa história? Querem saber o final dessas visões de mundo tão diferentes (Gringo Brauer e o Reverendo Pearson) e as consequências desse embate?

 

Não deixem de ler “O vento que arrasta”, de Selva Amada. Um livro cuja autora tem o pleno domínio do ofício da escrita. Um roteiro totalmente inusitado, que pegará a todos aqueles que gostam de uma história bem contada.

 

Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 (Atualizado: 08 de agosto de 2016) | Tags: Romance


< A entrega A Odisseia de Jorge Amado >
O vento que arrasa
autor: Selva Almada
editora: Editora Estação da Liberdade
gênero: Romance;

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

A Idade da razão

Resenhas

O último dia de um condenado

Resenhas

O coração das trevas