Livros > Resenhas

Sinfonia em Branco

"Sinfonia em branco", de Adriana Lisboa, é um romance aclamado internacionalmente e vencedor do Prêmio José Saramago, em 2003. Confesso, e bato no peito, fazendo um mea culpa, que somente agora, semana passada para ser mais preciso, peguei essa obra e li. Simplesmente, adorei. E, como todas as obras que leio e gosto, sei que ainda lerei este livro novamente, em outro momento, pois há muito tempo que não lia algo tão bom. “Sinfonia em Branco” traz um refinamento e demonstra uma enorme intimidade com a arte de escrever. A história segue o roteiro de um trio: Tomás e as irmãs Clarice e Maria Inês - em torno do qual giram outros personagens, ora na pacata cidade de Jabuticabais, interior do estado do Rio de janeiro, ora nas cosmopolitas Veneza e Rio de janeiro.

Clarice e Maria Inês vivem em uma fazenda no interior do estado do Rio de janeiro, aparentemente tranquila, na década de sessenta e na década de setenta. É a história de uma família onde as verdades feias são mantidas escondidas, em segredo, não ditas, em paralelo com os anos da ditadura brasileira.

“Os proibidos a seduziam na mesma medida com que cerceavam Clarice, sua irmã mais velha, que já ia completar treze anos e era obediente como um cãozinho treinado, que não se aproximava da grande pedreira e não fazia perguntas sobre a tragédia da fazenda dos Ipês. Os proibidos.”


Os traumas que o livro nos mostra aparecem através da agressão e do abandono dos adultos. Mas tudo dentro de regras pouco claras onde as ferocidades são praticadas em silêncio. Sim! Nada é explícito. É na quietude que as agressões na casa de Afonso Olímpio são praticadas e ignoradas, gerando imensos vazios. Cada irmã carrega um sintoma. Maria Inês é inadequada, mais racional, ainda vislumbra esperanças apesar de toda a barbárie que envolve a vida familiar. Clarice, dócil, recatada submissa e adorável. Sente na pele os abusos e os absurdos que a rodeiam. Equilibra-se sobre seus desequilíbrios.

A narrativa é apresentada de forma não linear e à medida que se revela, gradualmente, surgem os pormenores da história das duas irmãs, alternando a inocência característica da infância, repleta de expectativas e esperanças, com a vida que realmente levavam. O enredo se desenvolve através de breves relatos vividos ou imaginados, de descrições que se relacionam com a vida e a memória, entre diálogos e silêncios.

 

 

“A mãe delas estava em casa costurando. O pai delas havia ido até a cidade comprar remédios. Ainda eram apenas isso, naquela época: mãe, pai. Amigos potenciais...Ainda não havia medo, ainda não havia monstros respirando pelos cantos da casa: somente o futuro – que brilhava de expectativas como brilhavam os olhos delas”.


Mas foi na vida adulta que a pureza e as ilusões se estilhaçaram. Essa fragmentação permitiu reforçar a importância de alguns temas, através da sua repetição em diferentes planos temporais que, à semelhança das memórias das personagens, ecoam ao longo de todo o romance.

A infância na fazenda, os amores, a presença do pai, os segredos obscuros e compartilhados, os casamentos, as viagens, as dolorosas tentativas de compreender a vida, tudo isto se cruza numa história carregada de intenso lirismo e poesia. A suavidade do discurso do narrador toca apenas levemente na superfície dessas emoções latentes, permitindo ao leitor, apesar disso, ultrapassar o silêncio e compreender os conflitos interiores de Maria Inês e Clarice.

 

 

“Assim como os móveis da sala haviam sobrevivido a tantas investidas do tempo – o tempo é imóvel, mas as criaturas ( e objetos, e as palavras) passam. O estofamento cor de mostarda da grande poltrona reclinável estava puído em vários pontos, exatamente como a memória de Clarice ao passear pela época em que se recortava ali após o almoço, no coração de uma tarde quente e seca, e adormecia sem medo. Quando em sua vida ainda pulsavam as expectativas sinceras do antes de tudo”.


À medida que os diferentes fios narrativos convergem para a conclusão do romance, os segredos deixam de ser meras insinuações, despindo-se da sua natureza enigmática, momento em que a intemporalidade dos sentimentos retratados se manifestam em todo o seu esplendor. A quebra dos laços entre pai e filha se transforma em um “claro-escuro”: os sonhos de infância e a estupidez humana.

“Sinfonia em Branco”, de Adriana Lisboa, foi um romance que me surpreendeu. E confesso que o sentimento que ficou após a leitura é que a cada dia me surpreendo com a literatura brasileira e sua qualidade. Não falo como uma exaltação xenófoba em função de um sentimento xenófilo. Nada disso. Falo de uma escrita que realmente surpreende.

“Sinfonia em branco” é um romance que converge à música, à pintura, ao cinema, às artes plásticas e, claro, ao texto literário. É um romance desenhado a bico-de-pena. Cada frase alterna a precisão e a delicadeza necessárias à elaboração de um retrato imaginário, no qual se possam reconhecer os traços de vidas, vividas à sombra. O título da obra leva o nome do artista plástico americano James Whistler.

A obra de arte “Sinfonia em branco”, No. 1: The White Girl de Whistler rompe com as normas estabelecidas da época, e talvez tenha sido, de todas as obras a mais injuriada. Enquanto tons de branco da pintura e do lírio realizada pela mulher implica pureza, seus cabelos desgrenhados sugerem uma ambiguidade. Essa ambiguidade confundiu os críticos. Eles tentaram criar uma história por trás do assunto da pintura, inventando várias interpretações. Dentre elas, chamaram a modelo de um "sonâmbulo", "uma noiva recém-deflorada".

Quando Whistler a apresentou ao Salon de Paris 1863, o júri rejeitou a pintura e o artista. Claramente, Whistler estava mais interessado em criar um desenho abstrato do que capturar uma semelhança exata da modelo, sua amante Joanna Hiffernan. Sua adoção radical a uma orientação puramente estético e a criação de "arte pela arte" tornou-se um grito de guerra virtual do modernismo. Maria Inês é a garota de Whistler vestida de branco.

 

 

"Uma mulher que a memória sempre vestia de branco e de juventude”


Ela reencarnava uma jovem que se debruçava na sacada da janela do apartamento vizinho. Tomás a observava, mas ela não o via. Ao vê-la vestida de branco como bailarina, compôs em seus cadernos de desenho, totalmente hipnotizado desenhando não a pintura de Whistler, mas a sua própria pintura. Aquela visão que Tomás retém em sua memória o faz sair do vazio do exílio de seus pais. Maria Inês preenche aquele espaço.

Adriana Lisboa elabora uma "poesia da visão", conferindo ao romance uma leveza poucas vezes encontrada na prosa brasileira nas últimas décadas. A leveza está associada à precisão, à exatidão. Ítalo Calvino em seu livro “Seis propostas para o próximo milênio”, nos diz que, para combater o excesso, torna-se necessário narrar o mínimo, o exato com imagens nítidas e incisivas, para buscar o vago, a abstração e o leve. Em outras palavras, o leve para alcançar a leveza só pode ser alcançado através da precisão.

Em “Sinfonia em Branco”, o narrador não se prende a falar sobre a melancolia de Clarice, a voz narrativa opta pelas cicatrizes nos pulsos; pelo detalhe de um sorriso; pelo mínimo, pelo pequeno; pelo banquete dos pequenos detalhes, no olhar silencioso, em elementos extremamente sutis, impulsionado pela leveza da cena, da vida.

 

 

“Modelar uma Clarice nova do mesmo modo como se modelavam esculturas a partir de um bocado de argila.”

"Ela desembrulhou com cuidado a argila,alisou o jornal e o estendeu sobre o chão dobrado em duas partes. Devia ser possível compor um escultura que coubesse num daqueles títulos que ela tinha em mente(às vezes Clarice começava as esculturas pelo título, como um conto ou um poema ou uma canção):

O esquecimento

O esquecimento profundo

O esquecimento profundo e verdadeiro

O esquecimento definitivo,verdadeiro e profundo."


Perdas se reiteram em cada pequena tentativa de aperfeiçoamento brancos que o casamento de Maria Inês oferece “- Sofá branco, paredes brancas, poltronas brancas. Ideias brancas e inverdades brancas...um infinito mundo asséptico de fantasia”. Em outras palavras, nesse romance “menos é mais”.

Sem aderir a modismos estéticos de qualquer natureza, a autora molda uma forma própria de escrever, numa prosa marcada pela habilidade de tratar de forma singela e sedutora temas tão complexos. “Sinfonia em Branco” é um daqueles livros que se eternizam em nossas estantes.

É simplesmente primoroso.

 


Data: 08 agosto 2016 (Atualizado: 08 de agosto de 2016) | Tags: Drama


< Equador Quarto >
Sinfonia em Branco
autor: Adriana Lisboa
editora: Rocco
gênero: Drama;

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

Uma certa paz

Resenhas

As brasas

Resenhas

A confissão de um filho do século